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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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DANUZA LEÃO

Vida mais simples

Por força das circunstâncias, das escolhas, do destino talvez, quantas pessoas ela chegou a conhecer durante a vida? Poucas, na verdade.
Algumas amizades ficaram: umas da fase da loucura, outras do tempo em que só pensava em moda, ou queria derrubar a ditadura, ou acreditava no futebol de domingo. A verdade é que, por mais que tenha tido oportunidade de cruzar com gente de várias classes, idades e até mesmo países, quando pensa na população do mundo, chega à conclusão de que é mínimo o número de pessoas que conhece. Umas cem? Duzentas, 300 talvez? Daí talvez a curiosidade de saber da vida dos famosos, a avidez com que devora biografias e até compreende o sucesso das revistas de fofocas, que falam dos ricos e poderosos.
Um dia foi trabalhar numa grande empresa e teve a chance de conhecer gente de todo o tipo: dos poderosos chefões até os modestos que ganham muito pouco, e conviveu com realidades das quais só tinha ouvido falar -pessoas para quem no fim do mês uma passagem de ônibus ou uma barra de chocolate faz diferença.
Sabe (e até preferiria não saber) que a colega com quem divide problemas familiares, romances e receitas está toda feliz porque vai poder comprar um microondas com o 13º (em cinco vezes) e vê que tudo que ouviu falar da vida dos mais pobres é um pouco mais real do que imaginava.
Se habituou a ouvir os planos de fim de semana nas tardes de quinta-feira; enquanto os mais poderosos -e consequentemente com mais responsabilidades- se diziam exaustos, estressados e só queriam saber de se espichar num sofá durante dois dias para relaxar, os mais modestos sonhavam com a sexta-feira à noite, para emendar num chopinho antes de ir para casa.
"Tchau, tchau, bom fim de semana." Uns (ela inclusive) pegavam os seus carros, ligavam o ar-condicionado e iam ouvindo um CD, enquanto outros saíam a pé para o ponto do ônibus; cada um para a sua vida, esquecidos de que, durante a semana, dividiram as preocupações sobre a febre do filho ou o namorado que aprontou. Mas o interessante mesmo era ouvir os relatos da segunda de manhã.
As primeiras horas de trabalho eram passadas contando a programação dos últimos dois dias. Os de vida mais confortável (como ela) tinham histórias parecidas. Ou foram ver um show "uma droga", ou foram a uma festa "com as mesmas pessoas de sempre". Aí, no domingo, comeram um peixinho no sal grosso com uma salada -a eterna dieta-, rezando para a segunda-feira chegar logo; uma chatice esse tal de fim de semana.
Já os outros -você sabe quais- chegavam contando que se divertiram muito; sempre aparecia o cunhado, com um carro velho cheio de crianças, e iam todos a uma praia ali perto, a 120 quilômetros de distância. As mulheres, que nunca malharam, cuidavam dos comes e bebes (como sempre), e a mala ia cheia de esteiras, barracas, isopor com cervejas, limões, gelo, uma garrafa de cachaça para uma caipira e pacotes de biscoito de polvilho.
Passavam o dia rindo, os homens jogando bola, e voltavam amontoados e sujos de areia -120 quilômetros com trânsito-, suando, as crianças dormindo no colo; a outra ouvia espantada e com uma certa inveja, mas também com a certeza de que preferiria morrer a fazer um programa desses.
E pensando que seria bem mais feliz se tivesse uma cabeça mais simples.


E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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