São Paulo, sexta-feira, 08 de fevereiro de 2002

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Tortura musical serviu para medir tempo

Almeida Rocha/Folha Imagem
O delegado Wagner Giudice, da Divisão Anti-Sequestro, Washington Olivetto e André Midani, amigo do publicitário (a partir da esq.), durante entrevista ontem no auditório da Faap


DA REPORTAGEM LOCAL

A tortura psicológica -ouvir música dia e noite, por 53 dias- e uma regalia -tomar banho a cada quatro dias- ajudaram o publicitário Washington Olivetto a não perder a noção do tempo e a desafiar, dia após dia, os sequestradores, em um dos jogos que usou para se manter ocupado.
Primeiro, foi a música. Ela nunca parou, a não ser no dia em que os sequestradores fugiram.
Isso durou até os vigias perceberem que o publicitário as usava. Apertaram o comando ""repete" e isso complicou a contagem. "Aí repetia uma faixa, e você tinha de calcular uma por uma."
Olivetto passou, então, a contar de quatro em quatro, nos períodos em que recebia um balde com água para se lavar no cubículo.
"Trabalhei o dia todo normalmente e tinha um jantar na "Gazeta Mercantil". Saí da W/Brasil [às 19h30" com o Antonio [motorista". Eu nunca tive nenhuma infra-estrutura de segurança porque, sinceramente, nunca me imaginei como uma pessoa desejável para ser sequestrada. Curiosamente, o carro que eu estava foi blindado pelo motorista, com medo de levarem o relógio dele. Eu estava lendo e o Antonio tocando o carro. Aí havia o que, supostamente, seria uma batida da Polícia Federal. O Antonio abriu a porta e o cara foi agressivo. Naquele momento, aconteceu uma coisa curiosa. Eu somei a agressividade visual do comportamento do cara com uma coisa que eu senti: as letras onde estavam escritas Polícia Federal eram desproporcionais. Disse então: "Meu Deus, isso aqui é um sequestro". Deu-me um pânico. Eu lutei judô quando era menino e, desde os 17 anos, não tinha tido a oportunidade de entrar em nenhuma pancadaria para saber se sabia lutar. Abri a porta. No primeiro eu bati. O segundo já me peitou. Vieram cinco. Eles me guardaram naquele lugar e me levaram para o cativeiro. Foram 53 dias muito estranhos, nos quais eu jamais ouvi uma voz. Fui salvo pelo Monteiro Lobato, Scott Fitzgerald. Eu tive sorte na vida de aprender a ler e escrever com cinco anos. Jamais me imaginei como um símbolo do capitalista por meio da publicidade."
""Eu reivindiquei, com gestos [à câmera que o vigiava no cubículo", logo no segundo dia, uma caneta e um papel. Escrevi dia e noite, louco para que eles lessem. Isso me ajudou muito a viver.
Escrevia cartas, entre aspas, para minha mulher, para meu filho, para os meus sócios...Fingi que acreditava que as cartas eram enviadas. Sei quanto dura uma esferográfica. Ninguém sabe isso, porque normalmente a gente assina um cheque e a perde. Não escrevia à mão desde os 17. Estou com calo deste tamanho [dedo".
Escrevi a pauta inteirinha do livro sobre o Corinthians que eu estou fazendo e uma coisa que ainda não sei o que é, de racionalização dos meus sentimentos lá.
Você entra na cultura do "bate assopra", sabe? Tinha uma que eu mandei uma carta em que eu xingava oito gerações de todos eles. Era muito agressiva, a carta chamava eles de covardes. "Se vocês estão chamando isso de negócio, negócio se faz olhando no olho, eu quero ver, venham aqui, ponham um capuz e venham olhar minha cara." Aí eles mandaram uma carta para mim dizendo que eu era uma pessoa muito requintada, educada, que não tinha cabimento escrever aquilo (risos)."
""Tive acesso sobre qual era a regra do jogo, porque, assim como nos hotéis normalmente existe um negócio escrito atrás da porta, lá também tinha. Não podia encostar nas paredes produzindo ruídos, não deveria jamais falar. Deveria fazer exercícios físicos e procurar manter minha sanidade. Daí estabeleci as minhas regras do jogo. Percebi que teria de tomar cuidado com a alimentação para que não me sentisse mal. Você vai calculando como viver melhor."
""Fui muito agressivo no início. Obviamente, toda vez que eu era agressivo eles respondiam de maneira agressiva. Teve um dia que eu berrei, espanquei, o diabo, isso e aquilo. Eles entraram creio que em três, fui algemado e amordaçado. Fiquei uns 15 ou 20 minutos ali. Fiquei quieto e tiraram. Não dá para ficar muito quieto, se não você fica louco."
""Tinha música dia e noite. Ela fazia com que eu conseguisse calcular o tempo porque sabia mais ou menos quanto dura um CD inteiro [47 minutos". Música por música eu ia calculando. Deu para segurar um pouco a cabeça.
Como a música era muito alta, falei: "Pô, isso não acaba mais, isso vai me estourar o tímpano". Resolvi parar de lavar a orelha. Vou deixar a cera aqui.
""Eu reivindicava muito conversar. Eu sempre escrevia pedindo a eles que falassem comigo. Eu fazia pseudo-propostas alegóricas, que não iam valer nada, mas era uma maneira de tentar atrair alguém para falar. Tem também requintes de uma certa encheção de saco que é você reivindicar um livro e os caras colocarem "Papillon". Aí você finge que achou legal, mas diz que já leu. Aí eles colocam "1984", que é barra pesada."
"Tinha um copo azul, e essa é uma história muito louca. Ele aparecia normalmente todas as manhãs com suco. Aliás, com suco de alguma fruta já passada e repleto de açúcar, insuportável. Mas o copo tinha um azul muito bonito. Existe um artista plástico que eu gosto muito, chamado Ives Klein. Ele tanto misturou as tintas que ele chegou a um azul que o mundo inteiro chama "azul Klein". Aí fiquei anotando quantos quadros dele eu lembrava e gastei uns dois dias com esse negócio."
""Num dos poucos bilhetes que me foram remetidos internamente, alguns tinham um português bastante fluente e bem escrito, outros beiravam o portunhol.
Escrevi uma carta falando sobre minhas afetividades no universo hispânico e larguei lá.
Eles começaram a gostar da idéia de que eu escrevesse, que desse números alegóricos, possivelmente para usar isso fora."
"Minhas leituras eram muito cíclicas. Recebi uma revista de cultura excepcionalmente boa, chamada "Cult". Era um exemplar de agosto do ano passado [com entrevista de Caetano Veloso". Digamos que as nossas leituras são sempre muito similares historicamente. Ou seja, gostar da poesia do João Cabral de Melo Neto, ler Adorno, que é um cara que fala de poesia de uma maneira interessante. A partir daquela entrevista, eu fiquei lembrando de quantos poemas do João Cabral de Melo Neto sabia de memória.
""Comecei a escrever na parede nomes que eram meus pontos focais. Escrevi o da minha mulher, para, de vez em quando, me concentrar. Escrevi o nome do meu filho e pensava nela, o nome dos meus amigos... Eu ia gastando o tempo concentrando-me em caracteres afetivos de minha história de vida. Isso fazia com que eu pudesse, junto com o gesto de escrever, consumir o tempo.
Você tem que inventar o dia. O difícil de você estar em uma situação dessas [ficar em cativeiro", é a relação com o tempo."
""Percebi a saída deles, possivelmente, uma hora e pouco depois. Convivi com o escuro um bom tempo, passei a transpirar muito e fui checar a entrada de ar. Senti a falta de ar [ventilação não funcionava" e passou-me a idéia de que poderia morrer. Na quarta vez que bati, percebi que estava só.
Imaginei que, se existia uma porta, essa porta deveria ter uma dobradiça. Encontrei três parafusos e, com uma haste de um óculos que eles tinham me dado para ler, que não era meu, consegui abri-los, o que permitiu que abrisse uma fresta. Ouvi um latido, pela primeira vez. Comecei a treinar berrar um socorro, de uma maneira que não perdesse a voz, porque não sabia quanto tempo ficaria ali. Ouvi uma resposta, da mãe daquela encantadora garota do estetoscópio [ela colocou o instrumento na parede para ouvir Olivetto". Eu me identifiquei e acredito que foi aí que a menina começou a ouvir. Pedi para chamar a polícia. Os meninos do 12º Batalhão [Polícia Militar" pularam o muro e arrombaram a porta. Eram dois corintianos e dois palmeirenses."
"A última vez que isso passou mais forte no sábado [libertação". Já que eles fugiram e não levaram a grana, imaginei vingança. Eles estão bravos."
"Quero ainda aproveitar esse momento que estou fora do ar e dar uma descansadinha. Eu ia viajar no Natal e Réveillon. Queria ver os museus novos na Alemanha. Acho que vou fazer exatamente a minha viagem de Natal e Réveillon, daqui a uma semana.
Já tive dificuldades na minha vida, mas eu nunca tive, por mais difícil, [algo" que eu gostaria de esquecer. Esse episódio não, esse episódio eu quero esquecer e sei que será muito difícil.
Existe uma coisa que sempre me preocupou muito, que eu chamo de "perda da doçura". Acho que o tempo vai fazendo com que as pessoas, por uma série de coisas, percam a doçura, que sempre foi uma característica boa da minha personalidade, que eu sentia que perdia e tentava recuperar."

Ouça trechos da entrevista de Washington Olivetto na
www.folha.com.br/020381



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