São Paulo, quinta-feira, 08 de março de 2001

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PASQUALE CIPRO NETO

"A haver, são poucos"

Como faço há algum tempo, tratei de fugir da pátria amada no Carnaval. Simplesmente não aguento o tal "Tríduo de Momo", que, na verdade, há muito tempo deixou de ser tríduo (período de três dias) e se transformou em "quinquídeo" (período de cinco dias).
Em rápida passagem por Lisboa, recolhi esta delícia, publicada num título de alto de página do jornal "Público": "A haver, são poucos". Tratava-se de declaração de executivo da empresa Sociedade Porto 2001 a respeito da acusação de que haveria imigrantes ilegais em seu quadro de funcionários.
Que quis dizer o executivo, afinal? Para nós, a construção, de início, parece insólita, mas com algum esforço nos lembraremos de outras semelhantes, como esta: "A continuar assim, não conseguirá nada". A oração "A continuar assim" equivale a "Se continuar assim", ou seja, expressa idéia de condição. Lembrou?
Pois é, a frase do executivo corresponde a "Se houver (imigrantes ilegais), são poucos". Estamos diante do que um dia aprendemos na escola com o assustador nome de "orações reduzidas".
Lembra o que é isso? Uma oração é reduzida quando seu verbo está no gerúndio ("continuando", "havendo"), no particípio ("continuado", "havido") ou no infinitivo ("continuar", "haver").
Quando o verbo se apresenta conjugado no indicativo, no subjuntivo ou no imperativo, a oração é considerada desenvolvida. Em vestibulares importantes, é muito comum a abordagem do assunto. O que mais se pede é justamente a demonstração da capacidade de perceber a equivalência entre as estruturas reduzidas e as desenvolvidas.
Voltando ao exemplos iniciais, é preciso salientar um pormenor: você percebeu que na troca de "a" por "se", a forma "continuar" se manteve e "haver" passou a "houver"? Pois bem. Nos verbos regulares e em muitos irregulares, o infinitivo é igual a duas das formas do futuro do subjuntivo, o que ocorre com "continuar" ("quando/se eu continuar, quando/se tu continuares, quando/se ele continuar...").
Com "haver", isso não se verifica, já que seu futuro do subjuntivo é "quando/se eu houver, quando/se tu houveres, quando/se ele houver...". É bom lembrar também que o "se" é conjunção condicional e que nas orações reduzidas não existem conjunções. O "a" de "A continuar" e "A haver" é preposição. Talvez esteja aí a raiz da dúvida quanto ao emprego do verbo "haver" quando precedido da locução "no caso de".
Que forma se usa: "haver" ou "houver"? "No caso de não haver jogo" ou "No caso de não houver jogo"? Usa-se "haver", já que "no caso de" (perdoem-me pelo palavrão) é locução prepositiva, isto é, expressão equivalente a uma preposição. A oração, portanto, é reduzida, e não desenvolvida.
Como já afirmei várias vezes neste espaço, mais importante do que a nomenclatura é o conhecimento das várias estruturas que, nos seus diferentes níveis, a língua oferece. Conhecer a forma usada pelo empresário português não mata ninguém. Pouco comum no nosso dia-a-dia, essa construção encontra registro abundante na linguagem escrita formal culta. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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