São Paulo, segunda-feira, 08 de abril de 2002

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MOACYR SCLIAR

Os dois lados da rua



Faxineira evita o lado nobre: "Por que a gente iria lá? Não temos dinheiro para frequentar as lanchonetes, não temos conta nos bancos". Cotidiano, 1º. abr.2002

Não é um país, são dois países. A geografia não o registra; no mapa, os dois figuram com o mesmo nome. Mais: falam a mesma língua, têm o mesmo governo, as mesmas leis. Mas são, sim, dois países. Tão diferentes que poderiam ser antípodas.
A fronteira é imprecisa. Às vezes pode ser uma rua. Uma simples rua, movimentada ou não, larga ou não, mas rua, de qualquer modo. Os motoristas que por ali passam nem se dão conta de que estão trafegando no limite, a menos que um assalto ou uma bala perdida façam com que se dêem conta da realidade. A realidade dos dois lados. De um lado, mansões; de outro lado, casebres. De um lado, carros importados; de outro lado, chinelos de dedo. De um lado, diplomas universitários; de outro lado, analfabetos. De um lado, lautas refeições; de outro lado, barrigas vazias. De um lado, sorrisos; de outro, bocas desdentadas. Dois lados, dois países. Inimigos? Nem tanto. Às vezes, as pessoas até se conhecem. Às vezes, até torcem pelo mesmo time. Às vezes, até vêem o mesmo programa na TV. Às vezes, até votam no mesmo candidato.
Dois lados. Na falta de denominação melhor, são conhecidos como o Lado Nobre e o Lado Pobre. O Lado Nobre é mencionado com admiração e até orgulho; por exemplo, em anúncios de imóveis "Compre agora, no Lado Nobre, o melhor apartamento da cidade". O Lado Pobre não é mencionado, nem pelas pessoas que moram lá, nem por quaisquer outras pessoas. O Lado Pobre fica nas entrelinhas. O Lado Pobre fica subentendido. O Lado Pobre é aquele que não ousa dizer seu nome. O Lado Pobre é o lado das incertezas:
Quem vive no Lado Pobre
reza para que alguma migalha sobre.

O Lado Nobre é o lado em que brilha o cálido sol da Fortuna. No Lado Nobre, todas as notícias são boas, todas as surpresas são agradáveis:

Quem mora no Lado Nobre
de repente até barão se descobre.

No Lado Pobre, ao contrário, o sobressalto é a regra. Todas as novas são más novas. Estou desempregado. Estou na lista negra. Estou com alguma doença grave.

Quem vive no Lado Pobre,
só pode temer que, por ele, o sino dobre.

Quem vive no Lado Nobre come bem, veste bem, dorme bem.

Quem mora no Lado Nobre,
com lençóis de cetim se cobre.

Quem vive no Lado Nobre tem belos sonhos. Às vezes, interrompido por um pesadelo. Certamente vindo do Lado Pobre.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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