São Paulo, quinta-feira, 08 de abril de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASQUALE CIPRO NETO

"Arrasta os móveis, e as pernas..."

Há três semanas, tratei do emprego da vírgula antes da conjunção "e". O mote foi este título jornalístico, de gosto duvidoso: "Corinthians perde atletas, jogo e racha fora de campo".
Terminei o texto citando Olavo Bilac ("Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua") e Vinicius de Moraes ("...e com tal zelo, e sempre, e tanto..."). Nesses exemplos, registra-se um dos casos em que se emprega a vírgula antes da conjunção "e". Trata-se da figura do "polissíndeto" (palavra grega), que, como a tradução do nome revela ("vários" + "ligado", "unido"), consiste na repetição da conjunção ("e", nos casos vistos).
Vimos que a repetição da conjunção "e" provoca a sensação de que a oração iniciada por esse conectivo encerrará o período, o que não ocorre. Com isso, prolonga-se a expectativa do fim e, conseqüentemente, obtém-se ênfase para cada uma das orações que a conjunção "e" introduz.
E quando mais se pode (ou deve) usar a vírgula antes do "e"? Vamos pensar neste exemplo: "Depois de todo esse esforço, ele ainda consegue arrastar os móveis, e as pernas nem se arqueiam". Que faz aí o "e"? Une termos ("os móveis" e "as pernas")? Não, esse "e" não une termos, une orações, que, no caso, não têm o mesmo sujeito -fato-chave da nossa questão.
O sujeito da primeira oração é "ele"; o sujeito da segunda é "as pernas". As gramáticas costumam dizer que é desejável a vírgula antes do "e" quando essa conjunção liga orações de sujeitos diferentes. O motivo é simples: clareza, leitura reta, captação imediata da mensagem.
Sem a vírgula antes do "e", provavelmente a primeira leitura do texto seria feita como se o sujeito ("ele") arrastasse os móveis e as pernas. Ao chegar ao que vem depois de "as pernas" ("nem se arqueiam"), o leitor perceberia que a estrutura sintática é outra, mas já seria tarde. A opção seria recomeçar a leitura da frase.
Em outras palavras, a vírgula antes da conjunção impede que o leitor entenda (num primeiro momento) "móveis" e "pernas" como complementos de "arrastar", ou seja, impede que o leitor passe "batido" pelo fato de que o "e" não encerra uma enumeração de termos, mas soma orações (que têm sujeitos diferentes).
E quando as orações ligadas por "e" têm o mesmo sujeito? Em tese, a vírgula é dispensável, desnecessária, mas não é raro seu emprego, sobretudo quando se quer enfatizar a oração introduzida pelo "e". Esse emprego é mais comum em textos literários, filosóficos etc. Em textos jornalísticos, por exemplo, seu emprego não costuma ocorrer. Não haveria ênfase que justificasse uma vírgula antes do "e" de "Os ladrões invadiram a agência e prenderam todos os clientes no banheiro".
Convém lembrar que antes de "etc." a vírgula é optativa. Os que se guiam pela etimologia não empregam a vírgula, já que "etc." é a abreviatura da expressão latina "et cetera", que significa "e as demais coisas". Procedem assim o "Dicionário Houaiss" e a Folha, por exemplo.
Quem não leva em conta a origem considera o "etc." um elemento a mais da enumeração e, por isso, emprega a vírgula. Procedem assim o "Aurélio" e o "Vocabulário Ortográfico" (no texto do "Formulário Ortográfico"). A escolha é sua. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br



Texto Anterior: Farmácia Popular não é consenso no PT
Próximo Texto: Trânsito: Obra de corredor de ônibus interdita avenida no Socorro
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.