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DANUZA LEÃO
Compreender, sim, mas até onde?
Não me peça para entender gente que depois dos 30,
com aluguel para pagar,
fica falando da infância
V
AI QUERER entender as pessoas; aquela amiga, por exemplo, que você adora e que um
dia escolheu o pior homem que existia na cidade -talvez no planeta-
para ter um caso.
Fisicamente, nem feio ele era:
apenas banal. Banal a ponto de ser
ignorado se chegasse na praia de terno e gravata ou entrasse numa agência de banco de sunga. Charme, zero;
inteligência, três; cultura -bem,
passemos. Ah, mas ele era simpático: não, não era. Ah, mas as pessoas
gostavam dele: não, ninguém gostava dele. Ah, mas ele era um doce com
os filhos dela: não, era uma peste.
Ah, mas ele fazia uma salada como
nenhum chef do mundo: não, não
fazia. Ah, mas ele lavava uma xícara
como ninguém: não, não lavava. O
caso era simples: ele a fazia feliz, e
conseguiu uma proeza: que os amigos dela, os irmãos, os filhos, o ex-marido, a empregada, e mais quem
estivesse por perto não gostassem
dele. Mas conseguiu, sem nenhum
esforço, que ela largasse o mundo
por ele. Mulher é assim: acha que só
possui um bem na vida, o homem
que ama, e quando isso acontece,
deixa tudo por ele e se sente muito
feliz -enquanto dura.
O mundo foi girando, e os amigos
se afastando. Ninguém conseguia
conviver com o casal, sobretudo
após saber de algumas cenas deprimentes que ocorreram entre os dois;
e souberam por ela, que na hora do
sufoco pedia socorro e contava tudo.
O socorro era dado, claro, e a antipatia por ele só fazia crescer, claro.
Os amigos esperaram -afinal, é
para isso que eles existem-, mas
tem uma hora que cansa. E eles cansaram. Cansaram, mas deram apoio
-à distância- até o fim; afinal, o fim
ia mesmo chegar, era só ter paciência, e um dia ela se lembraria do episódio como de um pesadelo, como
costuma acontecer. Mas o que poderia ter sido resolvido em um mês durou dois anos. Quando acabou, todos
-os amigos, a família, os companheiros de trabalho- deixaram de
falar no nome dele, como se ele nunca tivesse existido.
Outros homens cruzaram pela vida dela -nada de muito retumbante, mas tudo bem- e o tempo continuou passando.
Mas eis que um dia -um uisquinho aqui, outro uisquinho ali- vem
o assunto, aquele. E ela acabou dizendo a frase que quase todas as mulheres já disseram um dia: "eu devia
estar louca"; mas logo em seguida
tentou desculpá-lo (e a si mesma),
dizendo "mas ele teve uma infância
complicada, com uma mãe repressora e um pai ausente".
Uma das amigas presentes, que
costumava dizer o que pensava, respirou fundo e, mesmo tentando ficar calma, desabafou: "Não me peça
para entender gente que depois dos
30, com aluguel para pagar e uma vida inteira para viver, fica falando da
infância, do pai e da mãe, e o pior:
ainda encontra gente para ouvir e
entender". Isso feito, tomou o resto
do uísque de um gole só, e completou dizendo que esse tal de dr. Freud
às vezes é um atraso de vida.
Segundo ele, todos os pecados serão compreendidos, às vezes até
perdoados, e as prisões deveriam ser
implodidas pois todos os criminosos
têm excelentes justificativas para
roubar e matar.
Grande filósofa essa amiga; se
existissem muitas mais iguais a ela,
o mundo seria bem, mas bem mais
feliz.
danuza.leao@uol.com.br
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