São Paulo, domingo, 08 de abril de 2007

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DANUZA LEÃO

Compreender, sim, mas até onde?

Não me peça para entender gente que depois dos 30, com aluguel para pagar, fica falando da infância

V AI QUERER entender as pessoas; aquela amiga, por exemplo, que você adora e que um dia escolheu o pior homem que existia na cidade -talvez no planeta- para ter um caso. Fisicamente, nem feio ele era: apenas banal. Banal a ponto de ser ignorado se chegasse na praia de terno e gravata ou entrasse numa agência de banco de sunga. Charme, zero; inteligência, três; cultura -bem, passemos. Ah, mas ele era simpático: não, não era. Ah, mas as pessoas gostavam dele: não, ninguém gostava dele. Ah, mas ele era um doce com os filhos dela: não, era uma peste.
Ah, mas ele fazia uma salada como nenhum chef do mundo: não, não fazia. Ah, mas ele lavava uma xícara como ninguém: não, não lavava. O caso era simples: ele a fazia feliz, e conseguiu uma proeza: que os amigos dela, os irmãos, os filhos, o ex-marido, a empregada, e mais quem estivesse por perto não gostassem dele. Mas conseguiu, sem nenhum esforço, que ela largasse o mundo por ele. Mulher é assim: acha que só possui um bem na vida, o homem que ama, e quando isso acontece, deixa tudo por ele e se sente muito feliz -enquanto dura.
O mundo foi girando, e os amigos se afastando. Ninguém conseguia conviver com o casal, sobretudo após saber de algumas cenas deprimentes que ocorreram entre os dois; e souberam por ela, que na hora do sufoco pedia socorro e contava tudo. O socorro era dado, claro, e a antipatia por ele só fazia crescer, claro.
Os amigos esperaram -afinal, é para isso que eles existem-, mas tem uma hora que cansa. E eles cansaram. Cansaram, mas deram apoio -à distância- até o fim; afinal, o fim ia mesmo chegar, era só ter paciência, e um dia ela se lembraria do episódio como de um pesadelo, como costuma acontecer. Mas o que poderia ter sido resolvido em um mês durou dois anos. Quando acabou, todos -os amigos, a família, os companheiros de trabalho- deixaram de falar no nome dele, como se ele nunca tivesse existido. Outros homens cruzaram pela vida dela -nada de muito retumbante, mas tudo bem- e o tempo continuou passando. Mas eis que um dia -um uisquinho aqui, outro uisquinho ali- vem o assunto, aquele. E ela acabou dizendo a frase que quase todas as mulheres já disseram um dia: "eu devia estar louca"; mas logo em seguida tentou desculpá-lo (e a si mesma), dizendo "mas ele teve uma infância complicada, com uma mãe repressora e um pai ausente".
Uma das amigas presentes, que costumava dizer o que pensava, respirou fundo e, mesmo tentando ficar calma, desabafou: "Não me peça para entender gente que depois dos 30, com aluguel para pagar e uma vida inteira para viver, fica falando da infância, do pai e da mãe, e o pior: ainda encontra gente para ouvir e entender". Isso feito, tomou o resto do uísque de um gole só, e completou dizendo que esse tal de dr. Freud às vezes é um atraso de vida.
Segundo ele, todos os pecados serão compreendidos, às vezes até perdoados, e as prisões deveriam ser implodidas pois todos os criminosos têm excelentes justificativas para roubar e matar. Grande filósofa essa amiga; se existissem muitas mais iguais a ela, o mundo seria bem, mas bem mais feliz.

danuza.leao@uol.com.br


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