São Paulo, terça-feira, 08 de abril de 2008

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CECILIA GIANNETTI

Ladrões de bicicleta

Os guris estavam armados com cacos de vidro; eles brincavam com um carrinho de madeira segundos antes

"TÔ COM UMA pistola aqui. Continua andando, me dá a carteira, me dá o celular, não pára, não olha pra trás." Quem paga pra ver? Não é o mais indicado. Aparvalhada com a abordagem repentina às 14h de domingo em Laranjeiras, entrego cada item exigido -pois o cara segura o que pode ser uma arma. (É uma pistola, ou uma embalagem de xampu muito esquisita). Ele está de bicicleta, última moda entre os assaltantes no Rio de Janeiro.
Quando nos abordou, parecia ser só um cara mal-educado pedindo passagem numa calçada estreita. Mas não demorou a fazer ameaças. Nada levou da minha amiga, embora ela estivesse à beira da calçada e de bolsa a tiracolo; de bicicleta eles devem assaltar sempre uma pessoa só de cada vez, levando apenas o que cabe nos bolsos. O alvo preferencial era eu, com essa cara de gringa que faz com que ambulantes na praia me ofereçam "bíer" R$ 2 mais cara até que eu abra a boca e diga qualquer coisa em carioquês.
O ladrão não queria fardo além de carteira e celular. E minha amiga já havia sido assaltada faz bem pouco tempo por dois travestis na rua Augusta, em São Paulo... quem sabe haja um código secreto entre bandidos -travestidos, ou não-, delimitador de um prazo, algo como um período de carência, que deve ser obedecido até que a pessoa de bem seja novamente liberada a novos assaltantes?
Mais tarde, na delegacia onde fizemos o boletim de ocorrência, o inspetor Fred nos mostrou uma pasta "cheia de vagabundo" [sic]. Ele catava milho no teclado barulhento de um computador velho enquanto olhávamos dezenas de fotos para tentar reconhecer o assaltante.
"Tá tudo por aí na rua, ó", explicou o inspetor. "A Justiça é fraca. Acha mais fácil deixar eles soltos. Falta de espaço nas prisões". Nas páginas do álbum de figurinhas macabro havia crianças ("As vezes nem é menor, só parece. Subnutrição"), adultos, homens e mulheres. Gente de todo o tipo. Gente cujo rosto não me inspiraria qualquer desconfiança se não estivesse ali, fichado. E não falo somente de ladrões de bicicleta.
Fora do álbum, ainda não registradas, centenas que saem por aí brandindo revólveres e cacos de vidro como meio de vida, por escolha ou necessidade. Cacos de vidro, moda mais antiga que a das bicicletas. Dois dias depois, escapei de um approach feito com meia garrafa quebrada de refrigerante, no centro da cidade. Neste caso, o assalto do domingo serviu pra alguma coisa: a paranóia me indicou que era melhor correr quando um trio se aproximou de mim na calçada. Consegui atravessar a rua ilesa e entrar num boteco, de onde vi o casal de desconhecidos que caminhava ao meu lado ser atacado. Os guris estavam armados com cacos de vidro. Eram crianças, com um adolescente no comando; estavam brincando com um carrinho de madeira segundos antes de partirem pro ataque.
Só não digo que está tudo perdido no Rio por conta da noite anterior ao assalto: eu havia subido a Tavares Bastos, no Catete, para assistir a um show d'Os Subterrâneos no The Maze Inn, hotel na favela que aos sábados costuma ter bandas indies e jazz de primeira. Antes de o som começar, dei umas voltas pelas ruelas do morro, tomei cerveja e fiquei embasbacada com a vista lá de cima. Depois do show, uma Kombi levou a mim e meus amigos, de graça, até a rua do Catete, e caminhamos pelo bairro até encontrar um restaurante aberto. Tudo na paz.


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