São Paulo, sábado, 8 de agosto de 1998

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DATA VENIA
Autorização para poluir

HUGO NIGRO MAZZILLI

Pelo decreto 2.661, de 8/7/98, o presidente da República instituiu regras para as queimas controladas. Disse um ministro: "Não se está estimulando a queimada, mas regulamentando um fato".
Sob essa ótica, então, não é preciso combater o crime, como fato social: basta regulamentá-lo. Seria só estipular horários mais confortáveis para assaltos, admitir violências contra crianças só a partir de idade mínima, só facultar corrupção dentro de alguns padrões, trabalho escravo só de até oito horas por dia, discriminação racial apenas em áreas delimitadas, remédios falsificados somente se constarem de lista própria, fraudes à Previdência até um certo teto... Não é por aí a solução.
Merece cuidado um decreto como esse, editado às vésperas das decisão da Copa do Mundo, quando as atenções gerais estavam desviadas. E o prazo de carência imposto no decreto -de cinco anos- para a redução gradual das queimadas não será visto pelos atuais governantes...
Ora, as queimadas, como a que facilita o corte da cana-de-açúcar, constituem sério problema. Não pode um decreto autorizá-las se, por serem poluentes, ferem a lei 6.938/81, que conceitua a poluição de forma ampla. A Constituição assegura a todos o direito ao meio ambiente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Em 1994, no Conselho Superior do Ministério Público, participei da decisão de caso relatado pelo então conselheiro Luiz Antônio Guimarães Marrey. Por unanimidade, mandamos propor ação civil pública contra os responsáveis pela queima da cana-de-açúcar para fins de colheita.
O relator invocou o trabalho científico de Marinho e Kirchhoff,, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de São José dos Campos, sob o título "Projeto fogo: um experimento para avaliar efeitos das queimadas de cana-de-açúcar na baixa atmosfera". A combustão da palha da cana-de-açúcar libera poluentes, pois a excessiva emissão de monóxido de carbono e ozônio prejudica a qualidade do ar, traz danos às plantas naturais e cultivadas, à fauna local e até à população ribeirinha.
Os pareceres de José C. Manço e Antônio R. Franco, titulares de clínica médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP), apontaram os efeitos nocivos dessas queimadas sobre a saúde da população, ligando as doenças respiratórias à poluição do ar.
O Tribunal de Justiça também já reconheceu que as queimadas poluem o ambiente, causam dano à saúde pública e não são o único processo disponível para a colheita da cana ou para as demais práticas agrícolas.
Matam a flora e a fauna, gerando desequilíbrio ecológico. Destroem nascentes, invadem florestas e áreas de preservação permanente. Trazem danos a milhares de pessoas; poluem o ar que respiramos, a água que bebemos; causam ou agravam doenças respiratórias; sujam os lares; cortam o fornecimento de energia; provocam acidentes nas estradas. E não será a burocracia das autorizações governamentais que eliminará isso.
A sociedade não pode aceitar que um decreto, impunemente, degrade a qualidade de vida de todos nós.


Hugo Nigro Mazzilli, 48, é procurador de Justiça em São Paulo. Foi presidente da Associação Paulista do Ministério Público e membro do Conselho Superior do Ministério Público



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