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São Paulo, segunda-feira, 08 de setembro de 2003

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MOACYR SCLIAR

O último hippie

Protesto na Dinamarca pede preservação de comunidade hippie. Milhares de pessoas realizaram um protesto em Copenhague neste sábado para manifestar apoio à famosa comunidade hippie Christiania, localizada na capital dinamarquesa. A multidão reunida no local protestou contra os planos do governo de construir um conjunto residencial de luxo na área ocupada pela comunidade.
Mundo Online, 30.ago.2003

Os protestos foram inúteis, e o conjunto residencial começou mesmo a ser construído. Os hippies foram, pois, desalojados e acabaram se dispersando pela cidade.
Um apenas permaneceu: hábil concessão da companhia responsável pelo empreendimento, que procurava ganhar o apoio da opinião pública mantendo um hippie como residente. Era um homem idoso, que aderira ao movimento nos anos 60. A ele, pouco importava o lugar em que residisse. Queria ficar em paz, fumando sua maconha e cantarolando velhas melodias de Bob Dylan.
Mas em paz não ficaria. Tão logo o conjunto residencial foi concluído, o homem tornou-se objeto da curiosidade geral. Os moradores, sobretudo as crianças, reuniam-se em torno à precária cabana em que vivia (cuja porta estava sempre aberta) e ali ficavam a observá-lo, como se fosse um curioso animal.
A princípio, o velho hippie não deu muita importância àquela movimentação toda, aos jocosos comentários. Com o tempo, porém, aquilo começou a incomodá-lo. A seu pedido a administração do conjunto residencial construiu uma cerca que impedia a aproximação dos curiosos. Que, no entanto, não desistiam. Queriam ver o estranho morador de qualquer jeito. Um deles perguntou ao hippie quanto cobraria para permitir a passagem pela cerca.
Aquilo deu ao homem uma idéia. Já na semana seguinte, ele estava vendendo os ingressos, que, embora caros, eram disputados pelos moradores e por outros visitantes, que vinham até de longe.
O velho hippie está rico. Pouca gente sabe disso, mas ele já nem mora no conjunto residencial. Com o dinheiro que ganhou, comprou uma enorme casa num outro condomínio, este de luxo. Num carro com motorista, chega à sua cabana de madrugada, veste as suas antigas roupas e passa o dia ali, fumando maconha e cantarolando velhas melodias de Bob Dylan. À noite, depois que os visitantes se foram, regressa para sua casa, onde lhe aguarda trabalho: faz parte da direção do condomínio. Da qual é membro atuante. Recentemente propôs a introdução de um artigo no regulamento, proibindo a admissão ao local de hippies ou de quaisquer outros tipos estranhos.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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