São Paulo, terça, 8 de setembro de 1998

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"Melhoral Infantil" nos desfiles pela pátria

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

Antes, no Dia da Pátria, marchava-se. Nos anos 60, sobretudo, marchava-se. Em 1968, por exemplo, marchamos todos, crianças pequenas, com o uniforme de gala da escola, ao som da fanfarra de bumbos, tambores, triângulos, pratos e cornetas, guiados pelas acrobacias de uma baliza atlética, que encabeçava a tropa, portando as cores, as flâmulas da escola.
Tudo era muito ridículo, a gente marchando obrigado sob o sol ardente de Recife, por exemplo, a gente criança pequena, sem qualquer noção do que aquilo significava ou pretendia significar. E tiravam pontos das notas, castigavam as crianças que faltavam no desfile de Sete de Setembro, as tarefas da educação moral e cívica.
Tudo era muito ridículo, a escola de freiras era rígida, a ditadura era rígida: o espírito de civismo era coisa ditada pela polícia, pelo Exército, pelas Forças Armadas todas. O culto aos chamados "heróis" e aos símbolos nacionais era ordem de generais e marechais. Os tanques de guerra desfilavam pelas ruas, misturados às crianças pequenas em suas marchas escolares obrigatórias.
Tudo era muito ridículo, as mães e os pais atarantados, ignorantes, tinham de obedecer àquela situação. Se as crianças tinham febre, tosse ou gripe, e corriam o risco de faltar no dia do desfile, as mães enfiavam Melhoral Infantil, chá de mastruz com mel, essas coisas, com medo dos pontos perdidos.
Tudo era muito ridículo, a escola era ridícula, o país era ridículo -eu disse tudo isso aos meninos, tentando explicar a diferença entre o Sete de Setembro de ontem e o de hoje, tentando explicar que a verdadeira independência do Brasil teria sido a de Tiradentes, a da Inconfidência Mineira talvez, essa história.
Ainda que -eu disse aos meninos- a Inconfidência tenha sido um movimento das classes abastadas, de filhinhos de papai que tinham ido estudar na França (com exceção do arrancador de dentes Tiradentes e uns poucos).
Ainda que os objetivos da luta continuem inatingíveis: a exploração continua a mesma, a extorsão fiscal, a má aplicação da justiça, a administração corrupta, a cidadania nacional uma utopia.
As comemorações do Dia da Independência eu associo para sempre ao Melhoral Infantil, a tosses, febres, cataporas, quedas graves, contusões e outros males de infância -eu disse aos meninos, em plena cidade de Tiradentes, Minas Gerais, por ocasião do feriado de Sete de Setembro.
Levar os meninos para Tiradentes, Ouro Preto, Mariana, as cidades históricas, mostrar a elas que o Brasil já tem 500 anos nas costas e nenhuma vergonha na cara. Para ver se os meninos se comoviam.
Relembrar para eles o lema da bandeira que seria a nossa: a da liberdade, ainda que tardia etc. Citar para eles o "Romanceiro da Inconfidência", de Cecília Meireles: "A palavra liberdade/vive na boca de todos/:quem não a proclama aos gritos,/murmura-a em tímido sopro."

E-mail mfelinto@uol.com.br


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