São Paulo, quarta-feira, 09 de fevereiro de 2005

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CARNAVAL

Com medo de estourar o tempo, escola vetou carros com antigos compositores; Imperatriz, Beija-flor e Unidos da Tijuca são as favoritas

Portela desfila com águia mutilada e dá vexame ao barrar Velha-Guarda

Eduardo Knapp/Folha Imagem
Alegoria do carro no qual desfilariam integrantes da Velha-Guarda da Portela é empurrada no sambódromo após a escola encerrar seu desfile; veículo quebrou pouco antes de sair da concentração


DA SUCURSAL DO RIO

E DOS ENVIADOS ESPECIAIS

Ainda como bloco, a Portela surgiu em 1923. É a mais premiada do Carnaval do Rio, com 21 títulos, produziu ou abrigou gênios como Paulo da Portela e Paulinho da Viola e criou alguns dos melhores momentos da música brasileira. Tudo isso pareceu virar cinzas na madrugada de ontem, quando passou pelo sambódromo uma escola mutilada: começou o desfile com sua águia-símbolo sem as asas e terminou sem a participação da Velha-Guarda, seu coração e sua melhor voz.
O vexame foi o grande fato da segunda noite de desfiles das escolas de samba, ofuscando mais uma apresentação tecnicamente impecável da Imperatriz Leopoldinense, forte candidata ao título ao lado da Unidos da Tijuca.
As maiores vítimas do desastre foram exatamente seus antigos cantores, compositores, pastoras -os que tentam manter acesa a chama da Portela, a mais antiga escola do Rio entre as que nunca deixaram de participar do Carnaval. "Me desce. Me desce, pelo amor de Deus, senão eu vou me jogar. Quero desfilar", disse a pastora portelense Tia Surica, 64, de cima do último carro da Portela, impedido de desfilar porque a escola estava perto de estourar o limite de 80 minutos de desfile.
Tia Lourdes, 78, repetia com os olhos marejados: "Nunca passei por nada parecido. É muito triste". "É uma vergonha. Em 42 anos de Portela, nunca vi isso acontecer antes", disse Tia Cleide.
Era o cume de várias escolhas erradas. O enredo politicamente correto abordava as metas do milênio da ONU (Organização das Nações Unidas). Obteve patrocínio da entidade, mas se mostrou um tema nada afeito ao Carnaval. O enredo deixava isso claro com versos esdrúxulos como "a ONU e o samba, parceria ideal para o desenvolvimento mundial".
Menos de 48 horas antes de entrar na avenida, um incêndio no barracão da escola destruiu parte do abre-alas. O carro foi reconstruído em tempo recorde, com a retirada da parte queimada. Momentos antes do desfile, as asas da águia (símbolo da Portela) não encaixaram e a escola entrou na avenida com seu símbolo maior incompleto.
Outra águia, que encerraria o desfile trazendo a Velha Guarda, quebrou pouco antes de sair da concentração. Além do buraco que criou, fazendo a última ala correr desesperadamente, o problema levou o presidente da escola, Nilo Figueiredo, a não permitir que os antigos portelenses desfilassem, para não estourar o tempo de 80 minutos. O desfile foi encerrado aos 77 minutos.

Barrados na avenida
"Não deixaram a gente passar. A gente queria entrar e não pôde. Fecharam o portão na nossa frente. Que injustiça é essa? Eu sou uma velha, tenho 49 anos de Portela. Não mereço isso. Estou até passando mal", afirmou Olinda Vieira de Lima, 67, a Baiana.
"Estou me sentindo como um marido enganado. Confiei e aconteceu isso. Para mim, é o seguinte: os componentes pagam, a gente não. Entendeu o que eu quero dizer?", disse Elza de Moraes, 70.
Wilson da Cruz, 70, chorava a todo momento. "Nem quando minha mãe morreu, deixei de desfilar. Ela dizia que, se morresse, era para deixá-la na cama e ir desfilar, porque, se a gente morresse, ela ia fazer o mesmo", contou.
Para entrar na avenida, a Velha Guarda enfrentou a proibição regulamentar de integrantes de uma escola atravessarem a pista após encerrado o desfile -só carros com defeitos podem fazê-lo.
O impasse sobre a possibilidade de a Velha-Guarda atravessar ou não a avenida levou ao seguinte diálogo entre o presidente da Liga das Escolas de Samba, Aílton Guimarães Jorge, e o presidente da Portela, Nilo Figueiredo.
"Já que eles [da Velha-Guarda] insistem, podem passar, mas sem o carro [que ficou na concentração e foi rebocado em seguida pela avenida]", decidiu Guimarães.
Sem perceber que o relógio já estava parado, Figueiredo indagou: "E o tempo?", referindo-se à perda de pontos pelo atraso. Guimarães respondeu: "Que tempo, que nada. Passa".
"Eu tinha que tomar uma decisão. Perderíamos muitos pontos se estourássemos o tempo. A Portela passou bem no desfile, mas o carro quebrou, vamos fazer o quê?", disse Figueiredo.
"A regra diz que eles não poderiam atravessar a avenida depois do desfile. No entanto, decidi quebrar essa regra porque, afinal, era a Velha-Guarda, eles estavam chorando muito e achei melhor apostar no bom senso. Eles esperam o ano todo para colocar a roupinha e desfilar. Por isso, puderam cruzar a avenida atrás do carro", disse Guimarães Jorge.
O público se solidarizou com a Velha-Guarda e aplaudiu. Tia Surica fazia reverências ao público, recebia de volta aplausos e chorava. "Eu tinha de passar de qualquer modo. Nós, da Velha-Guarda, não podemos sair sem o aplauso do público."
Esperava-se que este fosse o ano da virada da Portela. Depois de 31 anos com o bicheiro Carlinhos Maracanã como presidente e sem vencer desde 1980, a escola estava revigorada com a presença mais freqüente de Paulinho da Viola e tradicionais portelenses na quadra. "Não podíamos ficar como estávamos. O saudável é a renovação", disse Paulinho antes do desfile. Ele saiu à frente da escola, ao lado da cantora Marisa Monte.
A desorganização do dia-a-dia se manifestou no desastre de ontem. Quando, no mês passado, o carnavalesco Amarildo de Mello disse que ainda não sabia como encaixar a águia no enredo sobre a ONU, já se podia temer o pior.
A águia sempre foi o abre-alas da Portela, a imagem de sua força, independentemente de enredo. As duas alegorias de águias quebraram e produziram uma das maiores vergonhas da história da escola. (LUIZ FERNANDO VIANNA, PEDRO SOARES, AMARÍLIS LAGE, JANAÍNA LAGE, LÍGIA DINIZ, PEDRO DIAS LEITE E TALITA FIGUEIREDO)

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