|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
URBANIDADE
Atrás dos tapumes
GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA
Depois de 32 anos construindo prédios e casas, o
operário Antônio Nunes de Oliveira entrou, enfim, na história
de uma de suas obras. "Ensino
engenheiro a trabalhar, afinal
nenhum estudo substitui a prática", disse Antônio a um punhado de adolescentes que, em
situação normal, não cruzariam os tapumes para levantar
a biografia de operários.
Migrante vindo do interior de
São Paulo em 1966, o mestre-de-obras Antônio rompeu a rotina
do anonimato porque, sem saber, estava virando personagem
de um livro escrito por crianças
e adolescentes. "O importante é
nunca desistir do sonho", aconselhou aos seus jovens entrevistadores.
A descoberta de Antônio nasceu de um transtorno. No ano
passado, a escola Nossa Senhora das Graças (o Gracinha) foi
submetida a uma profunda reforma. As aulas não iriam parar e os alunos teriam de conviver com o barulho e a poeira.
Uma das coordenadoras da escola, Maria Stella Scavazza,
lembra-se das dores de reformas
antigas. Certa vez, chegaram a
fazer uma emocionada cerimônia coletiva de despedida de um
ipê-roxo que reinava glorioso
no pátio, mas deu lugar a uma
biblioteca.
O corte daquele ipê-roxo não
chegava nem remotamente perto do trauma que se delineava
na escola.
Já que o tumulto era inevitável, a saída foi transformar a
obra em sala de aula. Da experiência, surgiu "Atrás dos Tapumes", livro lançado neste mês,
em que os alunos contam o que
viram e sentiram durante a
prolongada obra. Resolveram
registrar a vida dos trabalhadores e as diversas etapas da reforma.
Muitos estudantes, porém,
olharam também para dentro e
se preocuparam em se perceberem diante daquela mutação.
"A obra que acontece na estrutura física representa também
uma renovação no meu interior
e me mostra que há sempre um
momento em que se precisa deixar o passado e construir o futuro", escreveu Julia Lenzi. "O
exercício da memória é o de formação do ser, relembrar é despertar a mim mesma. E o que
essas paredes têm em mim? O
que eu tenho delas? Apenas eu
mesma", acrescentou Letícia
Genesini.
Com os operários da obra,
mestre Antônio, que já ensina
engenheiros, fez do canteiro sala de aula e dos tapumes lousas.
Afinal, quantas lições de vida
são melhores para alunos de
classe média e alta do que o
exemplo de um migrante que,
apesar de tudo, nunca pára de
sonhar?
@ - gdimen@uol.com.br
Texto Anterior: Justiça barra veículo pesado Próximo Texto: A cidade é sua: Trens da linha F são carroças, diz analista de sistemas de SP Índice
|