São Paulo, sábado, 09 de abril de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LETRAS JURÍDICAS

Três mortes e uma história

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

A morte de Terri Schiavo, a norte-americana mantida em vida vegetativa durante muitos anos até deixar de ser alimentada, por ordem judicial, foi substituída nas manchetes e nas imagens televisivas pela de Karol Wojtyla, o papa João Paulo 2º. Duas situações tão díspares têm dois traços comuns: a discussão do direito de morrer e a do aproveitamento político da morte. No direito de morrer a Schiavo teve certa semelhança com Tancredo Neves. Eleito pelo Congresso Nacional, Tancredo não foi empossado, falecendo depois de um mês de sobrevida em hospital, aqui em São Paulo, substituído pelo senador José Sarney, então vice-presidente.
Em passado ainda mais antigo, pelo menos a etapa final da vida de João Paulo 2º tem um traço remoto de semelhança, quanto ao exercício efetivo de seus poderes administrativos, com a do último ano de Woodrow Wilson (1856-1924) na presidência dos Estados Unidos. Deixando para o fim a questão do direito de morrer, tomemos esta derradeira comparação, do exercício efetivo do poder. Intelectual brilhante, Wilson não teve condições de exercer seu mandato no último ano, por periclitação de sua saúde mental. O papa, por deficiências físicas, não teve tais condições ante o estado de debilitação que o atingiu na etapa final, embora a Cúria Romana insistisse que ele se encontrava no pleno comando. Wilson também teve sua atuação passada para o povo como de plena eficiência, embora fosse conhecido na Casa de Representantes e no Senado que isso não era verdade. É, aliás, normal em qualquer situação de um só exercente do poder central que a maioria das decisões seja tomada e implementada pela burocracia oficial. Nisso o papado, com a Cúria Romana e as presidências, com seus escalões de apoio, se parecem.
O aproveitamento político está nos quatro casos. Na alternativa dolorosa de Terri Schiavo se estabeleceram (ao lado dos que verdadeiramente se preocupavam com a realização digna do melhor para ela) conflitos político e religioso, impedindo a avaliação serena. Estava em foco o próprio conceito do que é a vida. Se é a mera sobrevivência do coração pulsante ou se é a soma de existência mais dignidade do existir, em alguma forma de integração com o entorno humano e físico do ser atingido pela impossibilidade de manifestação e do exercício dos atos inerentes, sem recuperação viável.
Os elementos referidos se entrosam com o direito de morrer. Este se contrapõe ao direito constitucional inviolável do viver. Ambos podem subsistir simultaneamente, quando aquele seja substituído pela falência de todos os órgãos, ou, em outro pólo, no nascimento sem cérebro. Nem sempre é possível determinar, como ficou claro na vida da Schiavo, sem nenhum contato com a realidade que a cercava.
O assunto, porém, é denso e cheio de dificuldades. Compreende-se, pensando apenas em termos jurídicos, a existência de tantas opiniões contrastantes. Voltemos a Terri Schiavo, mais uma vez. A pergunta fundamental é simples: se os piores criminosos, nos países em que a pena de morte é aceita, têm direito de serem mortos com o menor sofrimento possível, como condenar uma pobre moça inocente a morrer de fome? A exploração política obscurece a solução.
Os três casos de morte sugerem atento reexame do direito de morrer, para mais além do debate emocional agora dominante, de vez que há alternativas nas quais não ofende necessariamente o direito de viver.


Texto Anterior: Caminho perigoso: Viaduto é feito sobre área contaminada
Próximo Texto: Livros Jurídicos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.