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LETRAS JURÍDICAS
Três mortes e uma história
WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA
A morte de Terri Schiavo,
a norte-americana mantida em vida vegetativa durante
muitos anos até deixar de ser alimentada, por ordem judicial, foi
substituída nas manchetes e nas
imagens televisivas pela de Karol
Wojtyla, o papa João Paulo 2º.
Duas situações tão díspares têm
dois traços comuns: a discussão do
direito de morrer e a do aproveitamento político da morte. No direito de morrer a Schiavo teve certa
semelhança com Tancredo Neves.
Eleito pelo Congresso Nacional,
Tancredo não foi empossado, falecendo depois de um mês de sobrevida em hospital, aqui em São
Paulo, substituído pelo senador
José Sarney, então vice-presidente.
Em passado ainda mais antigo,
pelo menos a etapa final da vida
de João Paulo 2º tem um traço remoto de semelhança, quanto ao
exercício efetivo de seus poderes
administrativos, com a do último
ano de Woodrow Wilson (1856-1924) na presidência dos Estados
Unidos. Deixando para o fim a
questão do direito de morrer, tomemos esta derradeira comparação, do exercício efetivo do poder.
Intelectual brilhante, Wilson não
teve condições de exercer seu
mandato no último ano, por periclitação de sua saúde mental. O
papa, por deficiências físicas, não
teve tais condições ante o estado
de debilitação que o atingiu na
etapa final, embora a Cúria Romana insistisse que ele se encontrava no pleno comando. Wilson
também teve sua atuação passada
para o povo como de plena eficiência, embora fosse conhecido
na Casa de Representantes e no
Senado que isso não era verdade.
É, aliás, normal em qualquer situação de um só exercente do poder central que a maioria das decisões seja tomada e implementada pela burocracia oficial. Nisso o
papado, com a Cúria Romana e as
presidências, com seus escalões de
apoio, se parecem.
O aproveitamento político está
nos quatro casos. Na alternativa
dolorosa de Terri Schiavo se estabeleceram (ao lado dos que verdadeiramente se preocupavam com
a realização digna do melhor para
ela) conflitos político e religioso,
impedindo a avaliação serena. Estava em foco o próprio conceito do
que é a vida. Se é a mera sobrevivência do coração pulsante ou se é
a soma de existência mais dignidade do existir, em alguma forma
de integração com o entorno humano e físico do ser atingido pela
impossibilidade de manifestação e
do exercício dos atos inerentes,
sem recuperação viável.
Os elementos referidos se entrosam com o direito de morrer. Este
se contrapõe ao direito constitucional inviolável do viver. Ambos
podem subsistir simultaneamente, quando aquele seja substituído
pela falência de todos os órgãos,
ou, em outro pólo, no nascimento
sem cérebro. Nem sempre é possível determinar, como ficou claro
na vida da Schiavo, sem nenhum
contato com a realidade que a cercava.
O assunto, porém, é denso e
cheio de dificuldades. Compreende-se, pensando apenas em termos jurídicos, a existência de tantas opiniões contrastantes. Voltemos a Terri Schiavo, mais uma
vez. A pergunta fundamental é
simples: se os piores criminosos,
nos países em que a pena de morte
é aceita, têm direito de serem mortos com o menor sofrimento possível, como condenar uma pobre
moça inocente a morrer de fome?
A exploração política obscurece a
solução.
Os três casos de morte sugerem
atento reexame do direito de morrer, para mais além do debate
emocional agora dominante, de
vez que há alternativas nas quais
não ofende necessariamente o direito de viver.
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