São Paulo, quarta-feira, 09 de maio de 2007

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GILBERTO DIMENSTEIN

Receita de família

Os migrantes, constatou a chef Mara Salles, esquecem suas raízes e se enchem de produtos industrializados

O TALENTO culinário de Mara Salles foi despertado por uma desgraça familiar. Sem dinheiro, o pai teve de se mudar para São Paulo, onde 12 pessoas dividiriam uma casa em Perdizes. Além de ter de preparar a comida para todos, evitando ao máximo desperdícios, Encarnação, a mãe de Mara, ganhava uns trocados vendendo marmitas. "A cozinha tornou-se para mim ao mesmo tempo um refúgio e uma sala de aula." A busca de um refúgio era compreensível. Ela morava numa fazenda, quase sempre estava descalça, subia em árvores e tomava banho de rio. "Imagine o que é para uma menina do mato ter de ficar, na marra, na cidade grande."
Mara só foi reconhecer, muito tempo depois, o valor daquela sala de aula improvisada em sua casa. Abriu um restaurante (Tordesilhas), considerado por cinco anos consecutivos, de acordo com revistas especializadas, o melhor em cozinha brasileira. Nesta semana, ela volta a lidar com a escassez na cozinha dos tempos em que, menina, aprendeu a tirar proveito da xepa da feira. Desta vez, sua clientela é bem diferente daquela que costuma ir a seu restaurante. Estará na escola estadual D. Pedro I, em São Miguel Paulista, na zona leste, dando um curso gratuito intitulado "Ingredientes de segunda, comida de primeira".

 

Para aprimorar seus conhecimentos, Mara desenvolveu o hábito de fazer "residências" culinárias, viajando pelo Brasil: passa algum tempo morando com famílias, observando como preparam suas refeições. Dali vai tirando as inspirações para suas receitas. "Essa vivência é fundamental." Acabou de voltar, nesta semana, do Vale do Jetiquitinhonha, em Minas Gerais, onde ficou por dez dias numa fazenda. "É incrível o que eles são capazes de fazer com o milho." Muito desse conhecimento se desfaz quando as famílias vêm para São Paulo. Os migrantes, constatou a chef, esquecem suas raízes e se enchem de produtos industrializados.
Seu primeiro desafio será resgatar a culinária para festas juninas. "Muita gente da zona leste vem do Nordeste e abandonou as tradições."
 

Durante quatro dias, Mara, convidada pela Fundação Tide Setubal, instalada na zona leste, dará aulas para donas-de-casa e merendeiras de escolas públicas, a quem pretende ensinar pratos nutritivos e saborosos. "É importante as pessoas ouvirem da boca de um chef que, na casa deles, há muito desperdício e que podem tratar o alimento com carinho. Quero despertar a percepção de que ser pobre não é motivo para não fazer coisas boas e gostosas." Parte da visão de Mara vem do fato de que ela se mudou para São Paulo e não se desconectou da herança do vida do interior. "Sempre mantive o gosto de fazenda na boca." Mas seu interesse em São Miguel tem laços mais fortes do que as lembranças da fazenda. Está associado às lições que aprendeu na família, especialmente com as artes de Dona Dega, como é conhecida Ercanação. Talvez por isso, simbolicamente, uma das professoras que levará para a periferia será a sua mãe, detentora de uma receita de bolo de fubá dos tempo do forno a lenha.

gdimen@uol.com.br


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