São Paulo, segunda-feira, 09 de agosto de 2004

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MOACYR SCLIAR

Os perigos do laptop

Até laptop é usado em pagamento de resgate. Cotidiano, 2.ago.2004

"Prezado senhor: estou lhe escrevendo a propósito do seqüestro do qual uma pessoa de sua família foi vítima na semana passada e que foi inteiramente planejado e realizado por mim. A operação foi bem sucedida, graças à sua colaboração, e só tenho de lhe agradecer por isso. Também lhe agradeço o fato de o senhor ter atendido minhas exigências, que incluíam uma soma em dinheiro, um telefone celular, um relógio de pulso e um laptop. É verdade que, em relação à quantia, o senhor pechinchou mais do que devia, levando minha paciência quase ao limite; que o celular não é dos melhores e que o relógio de pulso apenas quebra o galho, mas não sou pessoa de muitas exigências, de modo que não veja nisso uma reclamação.
Agora, com relação ao laptop -que não é, diga-se de passagem, dos mais sofisticados-, aconteceu uma história interessante. Eu já tinha um comprador para ele. O homem me pagou e estava com pressa de levá-lo, mas resolvi me certificar de que nada ficara na memória desse equipamento. Isso para me proteger, claro, mas também para proteger o senhor; afinal, computador é coisa pessoal e o que a gente armazena ali nem sempre pode ser revelado. E então verifiquei que, na pressa em pagar o resgate, o senhor tinha deixado vários arquivos. Alguns sem muito interesse, como aquela coleção de piadas que, francamente, me pareceram sem graça. Mas chamou-me a atenção um arquivo que o senhor intitulou Erótica e que li com muito interesse. Pelo que percebi, é uma troca de correspondência entre o senhor e uma certa Isabela; e, pelo que percebi, o senhor e a Isabela são um pouco mais do que bons amigos... Em matéria de erotismo, essas mensagens são o máximo, e quero lhe dar os meus parabéns.
Mas vamos ao detalhe que importa. Andei fazendo algumas investigações privadas (sim, seqüestradores também precisam fazer a lição de casa) e descobri que Isabela não é o nome de sua esposa, que se chama Joana. Isabela é a moça que trabalha no escritório ao lado do seu, e que o senhor conheceu casualmente, no elevador. Conversa vai, conversa vem, a coisa ficou, como o senhor mesmo diz, erótica, e a partir daí vocês têm se encontrado regularmente.
Tudo bem, não sou moralista e nada tenho contra ligações extra-conjugais, mas aqui está a minha proposta: quero R$ 20 mil para não enviar à dona Joana (já tenho até o e-mail dela) o arquivo Erótica. Sei que o senhor protestará; sei que o senhor dirá, irritado, que não bastava o seqüestro, ainda tem a chantagem. Mas o senhor precisa entender que as coisas estão difíceis, a taxa de juros continua alta, o custo de vida não é pequeno, de modo que sou obrigado a recorrer a esse expediente.
Mande, portanto, o dinheiro. Ah, e mande também uma bolsa para o laptop. O comprador faz questão disso. Diz que esse tipo de equipamento é delicado, e não pode estar sujeito a choques."


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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