São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2000

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LETRAS JURÍDICAS

Pimenta na boca dos outros

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Pessoas amigas me perguntam por que não fiz referência, nesta coluna dedicada ao Direito, ao homicídio praticado pelo jornalista Pimenta Neves, que matou a ex-namorada. Podendo ocorrer que o leitor tenha formulado a mesma questão, esclareço que quis aguardar um pouco, para saber dos fatos com mais clareza, deixando Pimenta para a fala dos outros. Mas em verdade venho tratando do tema há anos.
Qual é o tema? Desdobra-se em dois segmentos: o Poder Público, no Estado moderno, assumiu o monopólio da prática da Justiça, entendendo que apenas seus agentes podem distribuí-la, segundo critérios fixados em lei. É o primeiro segmento, merecedor de um acréscimo crítico. O Poder Público não honra o monopólio, nas evidentes falhas do seu equipamento, tanto na apuração quanto na punição dos delitos. Com isso, a imperativa necessidade de punir culpados fica frustrada, desapontando os cidadãos, estimulando os maus elementos na crença da impunidade, absoluta ou relativa.
O segundo tema se relaciona com a era da informação, inaugurada na segunda metade do século 20: a da condenação antecipada (de inocentes e culpados), com sacrifício do devido processo legal, da plena defesa, do contraditório. Sacrifício inaceitável, não apenas pela garantia da Constituição, mas também -e principalmente- porque se trata de direito natural, que transcende dos textos legais e os precede. Contudo, facilitado o escândalo, pelos meios de comunicação impressos ou eletrônicos, o devido processo legal é prejudicado porque os expostos ao noticiário (estimulado até mesmo pela troca de favores informativos entre nós, os jornalistas, e autoridades monopolizadoras da Justiça) não têm como escapar do ferro em brasa do "clamor público".
Generaliza-se, na convicção de muitas pessoas, que a ritualística legal é excessiva. Claro que a convicção domina, quando o rito da defesa é aplicado aos outros. A pergunta é óbvia: por que dedicar tanto tempo a punir Pimenta Neves se ele é homicida confesso, tendo matado a tiros uma mulher indefesa? A resposta também é óbvia. O rito processual lembra os agrotóxicos, uma vez que seu excesso mata a Justiça, mas, em dosagem apropriada, ele é imprescindível. Corresponde à garantia dos inocentes e, quanto aos culpados, determina que a punição aplicada seja compatível com a aferição do delito, segundo critérios previstos em lei. Nem mais. Nem menos.
O leitor talvez pense que não deveria ser assim, que as coisas da Justiça deveriam ser mais simples. É verdade. Deveriam mesmo, tanto que durante séculos a mesma crítica tem sido feita. Sem sucesso, porém. No Brasil e no mundo. Nos grandes autores de teatro, as situações confusas criadas pelos processos complicados descambam para o absurdo em teatrólogos antigos, como Shakespeare (1564-1616) e Gil Vicente (1470-1536) e autores modernos, em cujo rol nenhum é mais evidente que Franz Kafka (1883-1924), com seu genial "O processo". Eles espelham séculos do sentimento popular quanto ao que se oculta por trás da pompa e circunstância da Justiça oficial.
O direito de defesa é tão fundamental quanto a condenação do culpado. Punição livre de arbítrio. Dosada, em termos compatíveis com a definição legal. Sabe-se, evidentemente, que ricos e pobres deveriam ter o mesmo tratamento. Não têm. O ideal se revolta com a desigualdade, mas, ainda assim, a garantia do devido processo na forma da lei sobrepujará o defeito, inclusive e principalmente para os mais pobres, até que os seres humanos encontrem um caminho para dar substância à igualdade de todos.



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