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LETRAS JURÍDICAS
Pimenta na boca dos outros
WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Pessoas amigas me perguntam por que não fiz referência, nesta coluna dedicada ao Direito, ao homicídio praticado pelo
jornalista Pimenta Neves, que
matou a ex-namorada. Podendo
ocorrer que o leitor tenha formulado a mesma questão, esclareço
que quis aguardar um pouco, para saber dos fatos com mais clareza, deixando Pimenta para a fala
dos outros. Mas em verdade venho
tratando do tema há anos.
Qual é o tema? Desdobra-se em
dois segmentos: o Poder Público,
no Estado moderno, assumiu o
monopólio da prática da Justiça,
entendendo que apenas seus
agentes podem distribuí-la, segundo critérios fixados em lei. É o
primeiro segmento, merecedor de
um acréscimo crítico. O Poder Público não honra o monopólio, nas
evidentes falhas do seu equipamento, tanto na apuração quanto
na punição dos delitos. Com isso,
a imperativa necessidade de punir
culpados fica frustrada, desapontando os cidadãos, estimulando os
maus elementos na crença da impunidade, absoluta ou relativa.
O segundo tema se relaciona
com a era da informação, inaugurada na segunda metade do século 20: a da condenação antecipada (de inocentes e culpados), com
sacrifício do devido processo legal,
da plena defesa, do contraditório.
Sacrifício inaceitável, não apenas
pela garantia da Constituição,
mas também -e principalmente- porque se trata de direito natural, que transcende dos textos legais e os precede. Contudo, facilitado o escândalo, pelos meios de
comunicação impressos ou eletrônicos, o devido processo legal é
prejudicado porque os expostos ao
noticiário (estimulado até mesmo
pela troca de favores informativos
entre nós, os jornalistas, e autoridades monopolizadoras da Justiça) não têm como escapar do ferro
em brasa do "clamor público".
Generaliza-se, na convicção de
muitas pessoas, que a ritualística
legal é excessiva. Claro que a convicção domina, quando o rito da
defesa é aplicado aos outros. A
pergunta é óbvia: por que dedicar
tanto tempo a punir Pimenta Neves se ele é homicida confesso, tendo matado a tiros uma mulher indefesa? A resposta também é óbvia. O rito processual lembra os
agrotóxicos, uma vez que seu excesso mata a Justiça, mas, em dosagem apropriada, ele é imprescindível. Corresponde à garantia
dos inocentes e, quanto aos culpados, determina que a punição
aplicada seja compatível com a
aferição do delito, segundo critérios previstos em lei. Nem mais.
Nem menos.
O leitor talvez pense que não deveria ser assim, que as coisas da
Justiça deveriam ser mais simples.
É verdade. Deveriam mesmo, tanto que durante séculos a mesma
crítica tem sido feita. Sem sucesso,
porém. No Brasil e no mundo. Nos
grandes autores de teatro, as situações confusas criadas pelos
processos complicados descambam para o absurdo em teatrólogos antigos, como Shakespeare
(1564-1616) e Gil Vicente (1470-1536) e autores modernos, em cujo
rol nenhum é mais evidente que
Franz Kafka (1883-1924), com seu
genial "O processo". Eles espelham
séculos do sentimento popular
quanto ao que se oculta por trás
da pompa e circunstância da Justiça oficial.
O direito de defesa é tão fundamental quanto a condenação do
culpado. Punição livre de arbítrio.
Dosada, em termos compatíveis
com a definição legal. Sabe-se, evidentemente, que ricos e pobres deveriam ter o mesmo tratamento.
Não têm. O ideal se revolta com a
desigualdade, mas, ainda assim, a
garantia do devido processo na
forma da lei sobrepujará o defeito,
inclusive e principalmente para os
mais pobres, até que os seres humanos encontrem um caminho
para dar substância à igualdade
de todos.
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