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São Paulo, quinta-feira, 09 de outubro de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

"Quando você jurava que o nosso amor não morreria"

Na última segunda-feira, ouvi um pouco do novo (e belo) disco de Francis Hime. Maestro e arranjador, Francis é co-autor de muitas obras-primas da música brasileira ("Atrás da Porta", "Vai Passar", "Minha" etc., etc., etc.). No disco, há uma parceria de Francis com Paulinho da Viola ("Choro Incontido"). Na letra (de Paulinho), lê-se este trecho: "...meu abrigo / Onde guardo um sentimento / Para lembrar de um tempo / Que não vivemos mais / Quando você jurava / Que o nosso amor não morreria".
Belo mote para discutirmos o emprego da forma verbal "morreria", que, se me permite o leitor, é do futuro do pretérito, noutrora chamado de "condicional". No verbete "condicional", aliás, o "Aurélio" classifica de "desusado" o emprego de "condicional" com o sentido de "futuro do pretérito". Será? Em termos oficiais, sim, já que, em 1959, a NGB ("Nomenclatura Gramatical Brasileira") oficializou a denominação "futuro do pretérito". Na prática, porém, muita gente (sobretudo as pessoas mais velhas) continua chamando esse tempo pelo velho nome de "condicional".
Pois bem, como se explica o nome do futuro do pretérito? Será possível ao passado ter futuro? É claro que sim! Vejamos isso no belo excerto de Paulinho da Viola. Que se deduz em relação à vida do "nosso amor"? Ele morreu ou não morreu? Morreu, caro leitor ("um tempo que não vivemos mais"). E morreu antes ou depois dos juramentos? Depois, não?
Pois é aí que está o busílis: as juras de amor e a morte desse sentimento se dão no passado, mas não concomitantemente. A morte é posterior às juras de amor, ou seja, o soçobro do amor é futuro em relação às promessas de que ele seria eterno. Pronto! Está aí o tal futuro do pretérito, ou seja, futuro do passado, que, como vimos, expressa um fato futuro em relação a um ponto do passado.
Como ocorre com qualquer tempo verbal, o futuro do pretérito não é usado apenas com seu valor específico. Na imprensa, é comum seu emprego, por exemplo, quando não se tem certeza da informação veiculada ("A polícia localizou uma ossada que seria de uma mulher"). Com "seria", deixa-se claro que não se sabe ao certo se a ossada é de uma mulher.
O problema é que muitas vezes a imprensa exagera nisso e deixa confuso o texto. Que quer dizer o jornalista que escreve algo como "Segundo a polícia, a ossada seria de uma mulher"? Que a polícia afirma que a ossada é de uma mulher, mas que ele (jornalista) não tem certeza disso? Ou que nem a polícia tem certeza disso?
Talvez por excesso de zelo, o jornalista usa o futuro do pretérito para se precaver de possíveis reviravoltas no caso. Não é preciso chegar a tanto. Basta que a polícia de fato tenha dito que a ossada é de uma mulher para que o jornalista possa escrever que, "segundo a polícia, a ossada é de uma mulher".
Por fim, é mister citar "O Último Poema", de Manuel Bandeira: "Assim eu quereria o meu último poema / Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais / Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas / Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume...". Note que o Mestre emprega a forma "quereria", do futuro do pretérito de "querer", em correlação com uma condição implícita ("Se fosse possível, assim eu quereria o meu último poema"). É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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