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MOACYR SCLIAR
O sono dos justos e outros sonos
Sequestradores dormem e refém foge
do cativeiro. O comerciante L.F., 30
anos, sequestrado na última sexta-feira em Osasco (Grande São Paulo),
fugiu do cativeiro enquanto dois de
seus sequestradores dormiam.
Cotidiano, 2.dez.2002
Ele acordou sobressaltado por causa dos roncos do
companheiro que, estirado no
mesmo colchão, dormia a sono
solto. Sacudiu-o:
- Acorda, rapaz! Como é que você está dormindo?
O outro sentou-se no colchão,
esfregou os olhos, ainda estremunhado:
- Como é que estou dormindo?
Peguei no sono, cara. O que há de
mal nisso?
- O que há de mal? O que há de
mal? O primeiro, indignado.- Você não podia estar dormindo, cara! Era a sua vez de ficar acordado, lembra? Eu disse a você: "Vou
dormir um pouco, você fica de
guarda. Depois você dorme e eu
vigio". Lembra, cara? Lembra-se
disso?
O outro sacudiu a cabeça afirmativamente. Agora lembrava:
- É verdade, cara. Eu tinha de ficar de guarda. Mas adormeci. Me
deu um cansaço enorme, e eu
adormeci.
Pôs-se de pé, os olhos arregalados:
- E o homem? O nosso homem?
Correram os dois para a peça ao
lado. Vazia. Não havia ninguém.
E a janela estava aberta: sem dúvida, o sequestrado tinha escapado por ali. O primeiro ficou por
conta:
- Viu? Viu o que você fez? O pessoal vai nos matar, cara! E com
toda a razão!
Agarrou o companheiro, sacudiu-o como um gato sacode um
rato:
- Como é que você fez isso, cara?
Como é que você foi adormecer?
Fala, animal! Desembucha!
O segundo, cabeça baixa, não
dizia nada. Por fim, falou, os
olhos cheios de lágrimas:
- É que eu tomei uns comprimidos para dormir, cara. Ontem. Eu
sofro de insônia -essa nossa vida
agitada, você sabe- então tomei
o remédio. Acho que exagerei na
dose.
- Exagerou mesmo. O primeiro,
irônico.- Exagerou mesmo, cara.
Ficaram um instante em silêncio. O primeiro então olhou o dorminhoco com ar inquisitivo:
- Diga uma coisa: você sonhou?
Hein? Você sonhou?
O outro hesitou um instante. E
aí confessou:
- Sonhei, cara. E era um sonho
muito bom. Sonhei que a gente tinha cobrado um tremendo resgate e que estávamos ricos. Foi isso
que sonhei.
O segundo soltou-o, sacudiu a
cabeça:
- Era o que eu pensava, cara.
Você sonhou. E isso, cara, é o pior
de tudo. Porque, se você sonhou,
estamos fritos mesmo.
O segundo nada disse. Nada havia para dizer. Porque ele sabia
muito bem: nos sonhos começam
as responsabilidades.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.
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