São Paulo, segunda-feira, 09 de dezembro de 2002

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MOACYR SCLIAR

O sono dos justos e outros sonos

Sequestradores dormem e refém foge do cativeiro. O comerciante L.F., 30 anos, sequestrado na última sexta-feira em Osasco (Grande São Paulo), fugiu do cativeiro enquanto dois de seus sequestradores dormiam. Cotidiano, 2.dez.2002

Ele acordou sobressaltado por causa dos roncos do companheiro que, estirado no mesmo colchão, dormia a sono solto. Sacudiu-o:
- Acorda, rapaz! Como é que você está dormindo?
O outro sentou-se no colchão, esfregou os olhos, ainda estremunhado:
- Como é que estou dormindo? Peguei no sono, cara. O que há de mal nisso?
- O que há de mal? O que há de mal? O primeiro, indignado.- Você não podia estar dormindo, cara! Era a sua vez de ficar acordado, lembra? Eu disse a você: "Vou dormir um pouco, você fica de guarda. Depois você dorme e eu vigio". Lembra, cara? Lembra-se disso?
O outro sacudiu a cabeça afirmativamente. Agora lembrava:
- É verdade, cara. Eu tinha de ficar de guarda. Mas adormeci. Me deu um cansaço enorme, e eu adormeci.
Pôs-se de pé, os olhos arregalados:
- E o homem? O nosso homem?
Correram os dois para a peça ao lado. Vazia. Não havia ninguém. E a janela estava aberta: sem dúvida, o sequestrado tinha escapado por ali. O primeiro ficou por conta:
- Viu? Viu o que você fez? O pessoal vai nos matar, cara! E com toda a razão!
Agarrou o companheiro, sacudiu-o como um gato sacode um rato:
- Como é que você fez isso, cara? Como é que você foi adormecer? Fala, animal! Desembucha!
O segundo, cabeça baixa, não dizia nada. Por fim, falou, os olhos cheios de lágrimas:
- É que eu tomei uns comprimidos para dormir, cara. Ontem. Eu sofro de insônia -essa nossa vida agitada, você sabe- então tomei o remédio. Acho que exagerei na dose.
- Exagerou mesmo. O primeiro, irônico.- Exagerou mesmo, cara.
Ficaram um instante em silêncio. O primeiro então olhou o dorminhoco com ar inquisitivo:
- Diga uma coisa: você sonhou? Hein? Você sonhou?
O outro hesitou um instante. E aí confessou:
- Sonhei, cara. E era um sonho muito bom. Sonhei que a gente tinha cobrado um tremendo resgate e que estávamos ricos. Foi isso que sonhei.
O segundo soltou-o, sacudiu a cabeça:
- Era o que eu pensava, cara. Você sonhou. E isso, cara, é o pior de tudo. Porque, se você sonhou, estamos fritos mesmo.
O segundo nada disse. Nada havia para dizer. Porque ele sabia muito bem: nos sonhos começam as responsabilidades.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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