São Paulo, quarta-feira, 09 de dezembro de 2009

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GILBERTO DIMENSTEIN

Antropofagia paulistana


Vindo do Amazonas, Daniel, 17, se matriculou numa escola pública. E descobriu que podia estudar guitarra -e de graça

DEPOIS de uma maratona que envolveu viagens de barco, caminhão, ônibus, saindo de uma pequena cidade do interior do Amazonas, Daniel Feitosa, 17, chegou a São Paulo com apenas uma vontade, tanta era sua insegurança.
"Queria chorar, tanto foi meu medo." Num único dia, conheceu o tumulto do terminal rodoviário, andou pela primeira vez numa escada rolante, entrou num elevador, movimentou-se debaixo da terra no metrô e caminhou por um bairro -a Liberdade- cheio de japoneses.
"Nunca tinha visto um japonês." Para completar a insegurança, perdeu, na viagem, o telefone de seu único contato em São Paulo.
Mas, certamente, tudo isso não é nada perto da surpresa que o espera no próximo domingo, quando entrar no auditório do Ibirapuera, sentado no palco, com uma guitarra na mão, ao lado de nomes como Arnaldo Antunes, Rappin Hood, Zélia Duncan, Fernanda Takai, entre muitos outros.

 
Daniel é um exilado do rock. Na cidade em que vivia -Envira-, com seus 17 mil habitantes, no Amazonas, quase fronteira com o Acre, quase ninguém gostava do som de sua guitarra. "Lá o ritmo que pega é o brega."
Envira só virou notícia nacional uma única vez em toda a sua história. Foi quando, no passado, um dos amigos de Daniel foi devorado por um índio -há uma tribo de canibais nas proximidades.
Com um grupo de amigos, todos roqueiros, ele veio para São Paulo, com muito mais medo do que de um eventual encontro com canibais.
Agarrava-se à sua mochila como se a qualquer instante alguém pudesse roubá-la. Por isso, muita gente deve ter achado estranha aquela cena do grupo, fazendo roda dentro do metrô e formando um círculo de proteção da bagagem.

 
Daniel tratou de se matricular no ensino médio de uma escola pública.
E, na andança pela cidade, descobriu que poderia estudar guitarra -e de graça. Matriculou-se no Polo Harmonia, do Projeto Guri, que, para sua sorte, estava planejando uma festa para comemorar 15 anos.
Foram convidados cantores e compositores, entre eles Arnaldo Antunes, para fazer um CD com música inédita, a ser apresentado pela primeira vez no próximo domingo no auditório do Ibirapuera, acompanhados por uma orquestra apenas com jovens formados pelo Guri -lá estará com sua guitarra Daniel, que tem muitas saudades de Envira, mas já se sente engolido por São Paulo.

 
PS - Coloquei músicas inéditas de Arnaldo Antunes e Fernanda Takai, gravadas para o projeto, no site www.catracalivre.com.br. Na minha frente, durante a entrevista, Daniel também teve uma outra primeira experiência em São Paulo: tomar um chá de saquinho.

gdimen@uol.com.br


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