São Paulo, sábado, 10 de janeiro de 2004

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LETRAS JURÍDICAS

"Dear general Powell, it is the reciprocity"

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

A identificação imposta a cidadãos americanos ao chegarem ao Brasil, fotografados e tiradas suas impressões digitais (é "tocar piano", na gíria policial), tem despertado muita atenção na mídia. Até o secretário Powell reclamou. O Direito mostra, porém, que não há razão para o escândalo. Muito antes de a Constituição de 1988 ter incluído entre os princípios dominantes de suas relações internacionais o da igualdade entre países e o da cooperação entre povos para o bem da humanidade, já predominava, como critério desse relacionamento, o princípio da reciprocidade, isto é, o Brasil deve tratar os outros como eles nos tratam.
Em 1988, o conceito foi reforçado em relação aos portugueses. A exceção se explica pelo fato de que este país gigante teve a criação original de nossos irmãos lusos. Diz o artigo 12 da Carta Magna, em seu parágrafo 1º: "Aos portugueses com residência permanente no país, se houver reciprocidade em favor de brasileiros, serão atribuídos os direitos inerentes ao brasileiro". A aplicação de tais preceitos decorre do princípio da soberania, isto é, o de decidir as questões internas segundo suas próprias leis, por seus próprios juízes. Há nações que, sob inspiração de interesses econômicos ou de força militar, aceitam o desequilíbrio do tratamento. Em nosso país, o presidente da República que aceite tal desequilíbrio cometerá crime de responsabilidade (artigo 85 e seu inciso VII da Constituição).
Em matéria de relações internacionais, quanto ao acesso de estrangeiros, o atendimento recíproco é a regra. Há algum tempo, a França passou a exigir visto de entrada e permanência para brasileiros. O Brasil também criou a exigência e desistiu dela quando os franceses a dispensaram. Talvez muitos cidadãos dos Estados Unidos não saibam que a reciprocidade também integra o sistema legal americano-do-norte. David Melinkoff, professor emérito de direito na Universidade da Califórnia (Los Angeles), define "reciprocity" em seu "Dictionary of American Legal Usage" (West Publishing Co., 1992). Está nessa obra, conforme o original, que a reciprocidade se aplica "between states of the United States or between nations: extending to the citizens of another state or nation privileges or benefits which that state or nation extends to our citizens". Em tradução livre: "Reciprocidade entre Estados dos Estados Unidos ou entre nações: estender a cidadãos de outro Estado ou nação privilégios ou benefícios que aquele Estado ou nação estende a nossos cidadãos". Ou, como resultado lógico, exclui cidadãos de tais privilégios ou benefícios.
Os Estados Unidos, no uso legítimo de sua soberania, embora sob argumentos que parecem absurdos ante nenhuma ameaça dos brasileiros à nação amiga, excluíram da exigência de fotografia e de identificação digital cidadãos de quase três dezenas de países, mas não os nossos patrícios. Fomos lançados na vala comum dos que podem ameaçar o gigante americano. Um juiz brasileiro -pouco importante neste momento saber se processualmente competente ou não- impôs a mesma exigência a cidadãos estadunidenses chegados ao território nacional. Nada mais justo. Quando o secretário de Estado estranhou, o ministro Celso Amorim, no melhor estilo convivial moderno, deve ter dito: "General Powell, it is the reciprocity, my dear friend". Ou seja: "É a reciprocidade, meu caro amigo". Melhor que isso só se o secretário de Estado se dispuser a ler a lei. De lá e de cá.


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