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PASQUALE CIPRO NETO
"Fazem-nas o tempo todo"
Formas incomuns na oralidade brasileira muitas vezes encontram registro nas variedades formais da língua
CERTA VEZ, EM LISBOA, perguntei a uma funcionária da
agência da PT (Portugal Telecom) do lindíssimo largo do Rossio
se existia ali algum telefone que funcionasse com cartão de crédito. "Havia uma cabina aqui, mas tiraram-na", disse-me a gentil rapariga.
Calma, leitor! Entre nós, a palavra
"rapariga" adquiriu sentidos que
não preciso explicar; em Portugal,
ainda é (apenas) o feminino de "rapaz". Mas voltemos à frase da rapariga, digo, da moça que me atendeu.
No Brasil, na língua do dia-a-dia, essa frase se transformaria em "Tinha
uma cabine aqui, mas tiraram (ela)".
Como dizia Chico Buarque, "há léguas a nos separar, tanto mar, tanto
mar" (de "Tanto Mar", composta
depois da Revolução dos Cravos, de
25 de abril de 1974). As léguas a que
Chico se referia eram metafóricas
-o que nos separava de Portugal era
a distância entre a liberdade (recém-obtida lá, depois de décadas sob a estupidez do salazarismo) e a torpe ditadura vigente em Pindorama.
Minha alusão aos versos de Chico
tem fundamento lingüístico: algumas léguas separam o português de
Portugal do nosso, embora a língua
seja uma só (prefiro a definição de
Saramago, que diz que "não há propriamente uma língua portuguesa;
há línguas em português"). Na informalidade, a língua de lá é bem diferente da nossa; na formalidade...
Pois era aí que eu queria chegar. O
que me disse a moça da PT não encontra registro na língua do nosso
dia-a-dia, mas nas variedades formais a coisa muda de figura. Um
bom exemplo disso vem desta questão do último vestibular da Fuvest:
"Reescreva o trecho "Jornalistas não
deveriam fazer previsões, mas as fazem o tempo todo", iniciando-o com
"Embora os jornalistas...'". Uma das
respostas possíveis é esta: "Embora
jornalistas não devessem fazer previsões, fazem-nas o tempo todo".
Na verdade, essa é a resposta mais
adequada, já que as outras possíveis
("Embora jornalistas não devessem
fazer previsões, eles as fazem/fazem-nas o tempo todo") esbarram
no desnecessário e um tanto rebarbativo emprego do pronome "eles".
O caro leitor já uniu os pontos, ou
seja, já ligou a questão da Fuvest à
resposta que me deu a funcionária
da PT em Lisboa? Já viu que o candidato a uma vaga na USP deveria dominar uma forma ("fazem-nas") rara na nossa informalidade, mas comum nos nossos registros formais?
Bem, a norma é esta: os pronomes
"o", "a", "os" e "as" se transformam
em "no", "na", "nos" e "nas" quando
pospostos a formas verbais terminadas em "ão", "õe" e "m". Tradução:
em "fazem previsões", o substantivo
"previsões" é substituído pelo pronome "as", que, posposto ao verbo
(terminado em "m"), passa a "nas"
("fazem-nas"). Relembro um caso
que citei aqui há um bom tempo, de
"O Plantador", canção de Hílton
Aciolly e Geraldo Vandré: "Deixem-no morrer, não lhe dêem água...".
Convém aproveitar o mote para
lembrar que os pronomes "o", "a",
"os" e "as" se transformam em "lo",
"la", "los" e "las" quando se pospõem
a formas verbais terminadas em "r",
"s" ou "z" (detalhe: essas três letras
somem). Tradução: em "Vimos Caetaninha olhar com saudade...", o termo "Caetaninha" é substituído pelo
pronome "a", que se transforma em
"la" ("Vimo-la olhar com saudade..."
-assim está em Machado). É isso.
inculta@uol.com.br
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