São Paulo, quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

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PASQUALE CIPRO NETO

"Fazem-nas o tempo todo"

Formas incomuns na oralidade brasileira muitas vezes encontram registro nas variedades formais da língua

CERTA VEZ, EM LISBOA, perguntei a uma funcionária da agência da PT (Portugal Telecom) do lindíssimo largo do Rossio se existia ali algum telefone que funcionasse com cartão de crédito. "Havia uma cabina aqui, mas tiraram-na", disse-me a gentil rapariga.
Calma, leitor! Entre nós, a palavra "rapariga" adquiriu sentidos que não preciso explicar; em Portugal, ainda é (apenas) o feminino de "rapaz". Mas voltemos à frase da rapariga, digo, da moça que me atendeu. No Brasil, na língua do dia-a-dia, essa frase se transformaria em "Tinha uma cabine aqui, mas tiraram (ela)".
Como dizia Chico Buarque, "há léguas a nos separar, tanto mar, tanto mar" (de "Tanto Mar", composta depois da Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974). As léguas a que Chico se referia eram metafóricas -o que nos separava de Portugal era a distância entre a liberdade (recém-obtida lá, depois de décadas sob a estupidez do salazarismo) e a torpe ditadura vigente em Pindorama.
Minha alusão aos versos de Chico tem fundamento lingüístico: algumas léguas separam o português de Portugal do nosso, embora a língua seja uma só (prefiro a definição de Saramago, que diz que "não há propriamente uma língua portuguesa; há línguas em português"). Na informalidade, a língua de lá é bem diferente da nossa; na formalidade...
Pois era aí que eu queria chegar. O que me disse a moça da PT não encontra registro na língua do nosso dia-a-dia, mas nas variedades formais a coisa muda de figura. Um bom exemplo disso vem desta questão do último vestibular da Fuvest: "Reescreva o trecho "Jornalistas não deveriam fazer previsões, mas as fazem o tempo todo", iniciando-o com "Embora os jornalistas...'". Uma das respostas possíveis é esta: "Embora jornalistas não devessem fazer previsões, fazem-nas o tempo todo".
Na verdade, essa é a resposta mais adequada, já que as outras possíveis ("Embora jornalistas não devessem fazer previsões, eles as fazem/fazem-nas o tempo todo") esbarram no desnecessário e um tanto rebarbativo emprego do pronome "eles".
O caro leitor já uniu os pontos, ou seja, já ligou a questão da Fuvest à resposta que me deu a funcionária da PT em Lisboa? Já viu que o candidato a uma vaga na USP deveria dominar uma forma ("fazem-nas") rara na nossa informalidade, mas comum nos nossos registros formais?
Bem, a norma é esta: os pronomes "o", "a", "os" e "as" se transformam em "no", "na", "nos" e "nas" quando pospostos a formas verbais terminadas em "ão", "õe" e "m". Tradução: em "fazem previsões", o substantivo "previsões" é substituído pelo pronome "as", que, posposto ao verbo (terminado em "m"), passa a "nas" ("fazem-nas"). Relembro um caso que citei aqui há um bom tempo, de "O Plantador", canção de Hílton Aciolly e Geraldo Vandré: "Deixem-no morrer, não lhe dêem água...".
Convém aproveitar o mote para lembrar que os pronomes "o", "a", "os" e "as" se transformam em "lo", "la", "los" e "las" quando se pospõem a formas verbais terminadas em "r", "s" ou "z" (detalhe: essas três letras somem). Tradução: em "Vimos Caetaninha olhar com saudade...", o termo "Caetaninha" é substituído pelo pronome "a", que se transforma em "la" ("Vimo-la olhar com saudade..." -assim está em Machado). É isso.


inculta@uol.com.br

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