|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
URBANIDADE
Mistérios da praça Benedito Calixto
GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA
Um simples detalhe na
herança de um milionário despertou uma incontida cobiça -o sumiço de uma caneta
raríssima. Ao saírem à procura
da preciosidade, guiados por pistas que os levavam a confrarias
de antiquários freqüentadas por
seres apaixonados por canetas,
colecionadores acabaram involuntariamente revelando mistérios da morte do milionário.
Esse roteiro de um livro de ficção, cujos originais estão adormecidos numa gaveta, nasceu
na praça Benedito Calixto, em
Pinheiros, onde todos os sábados
há uma feira de antigüidades. A
praça é local privilegiado para
conhecer a alma do colecionador
-ainda mais porque uma vendedora de canetas dali também
é psicóloga, treinada para entender as sutilezas da mente.
A psicóloga Zulmira Cabral já
tinha 40 anos de idade quando,
em 1987, mudou radicalmente
de atividade profissional. Deixou a clínica e seus pacientes para vender relógios e canetas antigos na Benedito Calixto. "Gostava de canetas e as colecionava
em meu consultório."
Aos poucos, porém, ela percebeu a confluência entre as peças
que vendia e a psicologia: "Conheci particularidades da alma
humana". Viu como os colecionadores se sentem autores de
uma obra que imaginam imortal, mas só encontram ressonância entre seus pares -fora desse
âmbito, são solitários, incompreendidos. "O colecionador não
tem herdeiro", diz.
A coleção se desfaz com a morte de seu dono. As famílias não
costumam acompanhar a paixão; muitas vezes, são até mesmo ressentidas com os milhares
de peças espalhadas numa parte
da casa. Em geral, as peças consumiram a atenção do colecionador e mesmo o seu dinheiro.
Um dos clientes de Zulmira, por
exemplo, desfez seu casamento.
Sua ex-mulher quer metade do
caríssimo estoque de 1.352 canetas, algumas das quais muito raras. Quer o valor, obviamente,
em espécie -até porque detesta
canetas. O caso está na Justiça
para que seja discutido o direito
que alguém teria de reivindicar
uma coleção, propriedade cujo
valor também é simbólico.
Diante dessas histórias de paixão por objetos que resistem ao
tempo, Zulmira resolveu escrever um romance sobre a psicologia do colecionador, com personagens fictícios. "Não sei nem se
vou publicar", diz ela, desconfiada de suas habilidades de escritora. Não existe pressa. Aprendeu, com seus relógios e canetas,
a tirar proveito do tempo -e de
seus mistérios.
E-mail - gdimen@uol.com.br
Texto Anterior: Responsabilidade é da LOT, diz secretário Próximo Texto: A cidade é sua: Leitor pede a remoção de 2 árvores em Higienópolis Índice
|