São Paulo, sábado, 10 de abril de 2004

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LETRAS JURÍDICAS

Fraquezas do direito lento

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

Freqüentemente me perguntam por que o direito não dá resposta para muitas das questões (talvez a maioria) surgidas no mundo moderno. Começando por dizer que não sou tão pessimista, tenho de reconhecer que as leis e os regulamentos estão longe de acompanhar as muitas transformações pelas quais passam as nações, os povos e as sociedades modernas. É, assim, verdade que os fenômenos sociais nasceram e se desenvolveram sem ser acompanhados pelo conjunto das leis do Brasil, no que, aliás, nosso país nem é melhor nem pior do que qualquer outro.
O mais significativo dos fenômenos sociais a interferirem na vida do direito foi demográfico: as populações deslocaram-se do campo para a cidade, dos pequenos municípios para os grandes, dos mais pobres para os mais ricos. Acrescente-se a esse primeiro fenômeno o das imigrações externas e o das migrações internas para constatar que só essas mudanças seriam suficientes para alterar as relações da cidadania, exigindo novos regulamentos habitacionais, ambientais, de tráfego e assim por diante.
A ciência, simultaneamente com as deslocações humanas, subverteu a antiga ordem jurídica. A transmissão da eletricidade à distância deu o grande impulso inicial, transferindo para a noite grande número de atividades, que passaram a ser reguladas por leis especiais. As telecomunicações, do telefone à internet, permitiram o contato interpessoal à distância, inserindo-se no mundo negocial e nas relações orais. As práticas médicas, os novos recursos em matéria de remédios, equipamentos, recomposições, transplantes facilitaram o prolongamento da vida, agravando problemas do idoso que antes, a rigor, não existiam. Tudo sob o impacto devastador da televisão, que criou novos heróis, novos símbolos humanos, gerando referenciais distantes da realidade nacional sem meios jurídicos para serem limitados.
A segunda maior transformação referiu-se ao papel da mulher. Ingressou no mercado de trabalho, passou a participar do financiamento das despesas familiares, ampliou a possibilidade de sua formação universitária, dispensou o nome do marido ao casar-se, ganhou a liberdade sexual, distanciou-se dos trabalhos do lar e da educação dos filhos e, por fim, obteve a absoluta igualdade jurídica em face do homem e, no lar, em face do marido ou companheiro, em tudo tendo igual força decisória.
As alterações no nível da realidade ético-religiosa foram imensas. A união do homem e da mulher não formalizada nem perante o juiz nem perante o ministro religioso passou a ser socialmente aceita. A pluralidade de "casamentos" de artistas e futebolistas passou a ser considerada normal, até engraçada, mas não imoral. As liberdades com a moda foram levadas ao extremo. Passou-se das grandes saias rodadas, com anáguas, combinações e saiotes por baixo, ao vestido sobre a pele, ao biquíni e à minissaia.
A Constituição continua preservando o que chama de "valores éticos e sociais da pessoa e da família" sem que se saiba exatamente o que isso significa no Brasil heterogêneo. Sem que se saiba, exatamente, quando o direito se adequará ao seu papel de regulador das relações interpessoais e das novidades nas quais mergulhou.
O direito, verdade seja dita, sempre andou a reboque das realidades sociais. Vez por outra, interagiu com elas, estimulando-as ou as restringindo para evitar excessos. Nós, no meio do turbilhão, temos de pagar o preço. Nada, em curto prazo, nos tirará da confusão.


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