São Paulo, quinta-feira, 10 de maio de 2007

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PASQUALE CIPRO NETO

"Com a palavra, Sua Santidade..."

A quem se dirigiu o locutor quando disse "Com a palavra, Sua Santidade..."? Ao próprio papa? Ou aos presentes?

OU SERÁ QUE foi Vossa Santidade que chegou? Pois é, o papa nem tinha chegado, e os leitores já me perguntavam sobre as formas de tratamento que se referem ao pontífice, os mecanismos de concordância que se adotam etc. Cá entre nós, os pronomes de tratamento às vezes têm cheiro de coisa um tanto pedante, falsamente formal, sobretudo num país tão informal como o nosso. Quando vejo deputados e senadores se dando o tratamento de "excelência" durante algumas fornadas de pizza, digo, durante algumas sessões das CPIs desta e de outras legislaturas, não sei se rio ou se choro... Quando alguns deles se metem a usar "excelência", mas não sabem combinar essa forma com as que lhe são concernentes, a coisa fica ainda mais caricata. Mas há o contraponto. Em certas situações, alguns pronomes são usados com deliciosa ironia, como quando se diz que determinado jogador chama a bola de "excelência" (para dizer que o "craque" não tem lá muita intimidade com a pelota) ou como quando, impiedoso, o povo não pensa duas vezes antes de chamar de "excelência" quem se mete a besta ou pensa ser mais do que é.
Pois bem. Enquanto escrevo esta coluna, o papa discursa em Guarulhos. Ao "convocar" o papa a pronunciar-se, o locutor oficial anunciou: "Com a palavra, Sua Santidade...". A quem se dirigiu o locutor? Ao próprio papa? A julgar pela forma empregada, não; dirigiu-se aos circunstantes. Se tivesse dirigido a palavra ao papa, teria empregado a forma "vossa" ("Vossa Santidade já pode falar", por exemplo). O prezado leitor percebeu que o verbo "poder" foi flexionado na terceira pessoa do singular? Pois aí está um nó do emprego dos pronomes de tratamento: a forma "vossa" pode induzir o falante a equiparar a "vós" expressões como "Vossa Santidade", "Vossa Excelência" e afins.
Lá vai uma dica bem simples: quando empregar qualquer pronome de tratamento, faça de conta que empregou o pronome "você" (ou "senhor", "senhora" etc.). Em outras palavras, isso quer dizer que, se dizemos (e, sobretudo, se escrevemos) algo como "O senhor (ou "você') sabe muito bem que os seus críticos o condenam pelas costas, mas lhe dirigem palavras delicadas quando o têm diante dos olhos", diremos e escreveremos "Vossa Santidade (ou "Vossa Excelência", "Vossa Senhoria" etc.) sabe muito bem que os seus críticos lhe dirigem palavras gentis quando o têm diante dos olhos", mas o condenam pelas costas.
Como se trata de linguagem formal, convém saber por que se empregaram os pronomes "lhe" (com "dirigir") e "o" (com "condenar"). Nas variedades formais da língua, emprega-se "o" (e não "lhe") com verbos que não regem preposição (é esse o caso de "condenar": se alguém condena, condena alguém); emprega-se "lhe" com verbos que regem certas preposições (dirigir palavras delicadas a alguém).
Voltemos ao papa. Se alguém quisesse perguntar a Sua Santidade sobre seu estado físico depois da travessia do Atlântico, diria "Vossa Santidade está cansado?" ou "Vossa Santidade está cansada"? "Cansado", prezado leitor. Nesse caso, faz-se a concordância de gênero com o ser representado, e não com a forma que o representa. É isso.

inculta@uol.com.br


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