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PASQUALE CIPRO NETO
"Com a palavra, Sua Santidade..."
A quem se dirigiu o locutor quando disse "Com a palavra, Sua Santidade..."? Ao próprio papa? Ou aos presentes?
OU SERÁ QUE foi Vossa Santidade que chegou? Pois é, o papa
nem tinha chegado, e os leitores já me perguntavam sobre as
formas de tratamento que se referem ao pontífice, os mecanismos de
concordância que se adotam etc.
Cá entre nós, os pronomes de tratamento às vezes têm cheiro de coisa um tanto pedante, falsamente
formal, sobretudo num país tão informal como o nosso. Quando vejo
deputados e senadores se dando o
tratamento de "excelência" durante
algumas fornadas de pizza, digo, durante algumas sessões das CPIs desta e de outras legislaturas, não sei se
rio ou se choro... Quando alguns deles se metem a usar "excelência",
mas não sabem combinar essa forma com as que lhe são concernentes, a coisa fica ainda mais caricata.
Mas há o contraponto. Em certas
situações, alguns pronomes são usados com deliciosa ironia, como
quando se diz que determinado jogador chama a bola de "excelência"
(para dizer que o "craque" não tem
lá muita intimidade com a pelota)
ou como quando, impiedoso, o povo
não pensa duas vezes antes de chamar de "excelência" quem se mete a
besta ou pensa ser mais do que é.
Pois bem. Enquanto escrevo esta
coluna, o papa discursa em Guarulhos. Ao "convocar" o papa a pronunciar-se, o locutor oficial anunciou: "Com a palavra, Sua Santidade...". A quem se dirigiu o locutor?
Ao próprio papa? A julgar pela forma empregada, não; dirigiu-se aos
circunstantes. Se tivesse dirigido a
palavra ao papa, teria empregado a
forma "vossa" ("Vossa Santidade já
pode falar", por exemplo).
O prezado leitor percebeu que o
verbo "poder" foi flexionado na terceira pessoa do singular? Pois aí está
um nó do emprego dos pronomes de
tratamento: a forma "vossa" pode
induzir o falante a equiparar a "vós"
expressões como "Vossa Santidade", "Vossa Excelência" e afins.
Lá vai uma dica bem simples:
quando empregar qualquer pronome de tratamento, faça de conta que
empregou o pronome "você" (ou
"senhor", "senhora" etc.). Em outras
palavras, isso quer dizer que, se dizemos (e, sobretudo, se escrevemos)
algo como "O senhor (ou "você') sabe
muito bem que os seus críticos o
condenam pelas costas, mas lhe dirigem palavras delicadas quando o
têm diante dos olhos", diremos e escreveremos "Vossa Santidade (ou
"Vossa Excelência", "Vossa Senhoria"
etc.) sabe muito bem que os seus
críticos lhe dirigem palavras gentis
quando o têm diante dos olhos",
mas o condenam pelas costas.
Como se trata de linguagem formal, convém saber por que se empregaram os pronomes "lhe" (com
"dirigir") e "o" (com "condenar").
Nas variedades formais da língua,
emprega-se "o" (e não "lhe") com
verbos que não regem preposição
(é esse o caso de "condenar": se alguém condena, condena alguém);
emprega-se "lhe" com verbos que
regem certas preposições (dirigir
palavras delicadas a alguém).
Voltemos ao papa. Se alguém
quisesse perguntar a Sua Santidade sobre seu estado físico depois da
travessia do Atlântico, diria "Vossa
Santidade está cansado?" ou "Vossa Santidade está cansada"? "Cansado", prezado leitor. Nesse caso,
faz-se a concordância de gênero
com o ser representado, e não com
a forma que o representa. É isso.
inculta@uol.com.br
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