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RUBEM ALVES
Cigarro e sacramento
Vou dar a minha explicação: as razões para o poder do cigarro não são só bioquímicas;
são literárias e poéticas
O ESCRITOR É UM cozinheiro
que prepara uma refeição de
palavras para o prazer dos
leitores. Mas há livros em que a culinária toma a forma de antropofagia.
Murilo Mendes sabia disso: "Quando eu não era antropófago -quando
não devorava livros- por que os livros não são feitos com a carne e o
sangue de quem os escreve?"
Isso acontece de forma especial
com os livros de memórias. Quem
escreve memórias se oferece para
ser devorado pelos seus leitores.
Pois é um aperitivo antropofágico
o que Gabriel García Márquez nos
serve num parágrafo do seu livro de
memórias "Viver para Contar".
Vou transcrever:
"Eu estava proibido de fumar por
causa da pneumonia, mas fumava
no banheiro, como que escondido
de mim mesmo. O médico percebeu
e falou sério comigo, mas não consegui obedecê-lo. Já em Sucre, enquanto tratava de ler sem pausa os
livros recebidos, acendia um cigarro
com a brasa do outro até não poder
mais e, quanto mais tentava abandonar o cigarro, mais fumava. Cheguei
a quatro maços diários, interrompia
as refeições para fumar e queimava
os lençóis quando dormia com o cigarro aceso. O medo da morte me
despertava a qualquer hora da noite,
e só fumando mais conseguia superá-lo, até eu decidir que preferia
morrer a parar de fumar. Mais de 20
anos depois, casado e com filhos, eu
continuava fumando. (...) Numa noite, durante um jantar casual em Barcelona, um amigo psiquiatra explicava a outras pessoas que o tabaco
talvez fosse o vício mais difícil de erradicar. E me atrevi a perguntar qual
seria no fundo, a razão, e sua resposta foi de uma simplicidade assustadora: "Porque, para você deixar de
fumar, seria como matar um ente
querido". Foi uma deflagração de
clarividência. Nunca soube e nem
quis saber a razão, mas esmaguei no
cinzeiro o cigarro que acabava de
acender, e não tornei a fumar mais
nenhum, sem ansiedade e nem remorso pelo resto de minha vida."
Pena que ele, escritor, não tivesse
sugerido uma explicação para esse
súbito milagre: um vício mortal, bioquímico, que havia derrotado a força
de vontade de um homem inteligente, desaparecendo sem deixar vestígios, ao ouvir umas poucas palavras.
Pois eu vou dar a minha explicação: as razões para o poder do cigarro não são só bioquímicas; são literárias e poéticas. O cigarro é um sacramento: é um objeto material que se
transforma num objeto espiritual
quando o fumante o liga a uma palavra poética. Descoberta essa palavra
poética, o seu poder desaparece. Um
cigarro é um portador de fantasias.
As empregadas, de manhã, em direção às casas das patroas, vão dando baforadas de fumaça. A fumaça
marca o território da liberdade. Ao
chegar ao emprego, seu cigarrinho
terá acabado; a liberdade, também.
O executivo me explicava o fascínio do seu cigarro. De noite, só, no
seu escritório, ele se transformava
numa outra pessoa pelo poder das
espirais de fumaça que o envolviam.
Estávamos, um grupo, num passeio de barco num rio próximo a
Bancoc. Todos falavam inglês. Menos o barqueiro. Aproximei-me e
começamos a nos comunicar por
gestos. Foi então que ele, num gesto
generoso de intimidade, ofereceu-me seu cigarro, molhado com saliva.
Eu tinha de aceitar. Aceitei e dei algumas baforadas. Aquele cigarro falava que ele gostava de mim...
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