São Paulo, Quinta-feira, 10 de Junho de 1999
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SAÚDE
Nova técnica, chamada microdissecção, extrai células reprodutivas dentro dos testículos e pode ajudar homens inférteis
Cirurgia inédita resgata espermatozóides

MARCELO LEITE
especial para a Folha

Há quem tente de tudo para gerar um filho próprio, biológico. J. S., 31, foi parar na sala 9 do Centro Cirúrgico do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. São 14h03. Dentro de minutos ele terá o testículo direito aberto ao meio.
É uma técnica cirúrgica para colheita de espermatozóides pioneira no país. O mais comum, até agora, eram incisões superficiais na gônada masculina, as chamadas microbiopsias.
Há outras nove pessoas na sala, além de J. S. Só quatro estão diretamente envolvidas na operação: os urologistas Agnaldo Cedenho e Marcos Mori, seu auxiliar, um anestesista e uma enfermeira.
Duas biólogas aguardam a coleta com plaquetas mantidas a 32º C, 2 a 3 graus abaixo da temperatura normal de um testículo, para evitar proliferação de bactérias. Maria Cristina Malheiros Negrão, bióloga-chefe, explica à reportagem da Folha o que acontece.
Um cinegrafista registra tudo em vídeo. A fita deverá ser apresentada no Congresso Brasileiro de Urologia, em novembro.
São 14h26. O bisturi abre 1 cm da pele do saco escrotal. Aparece uma membrana esbranquiçada, a "tunica vaginalis". Novo corte. "Kellys" (um tipo de pinças) puxam e forçam pela abertura o testículo, muito branco e oval.
Já transcorreram 23 minutos, muitos deles gastos em ajustes de foco e iluminação. J. S. está anestesiado e inconsciente. O braço do microscópio Zeiss de cirurgia já se encontra por sobre a mesa.
A aparelhagem custa entre R$ 263 mil e R$ 350 mil. Fica toda envolta por plástico esterilizado, transparente. Só os binoculares, um de cada lado, ficam de fora.
As imagens passam a ser gravadas na câmera digital JVC acoplada ao microscópio. Muitos problemas com foco. O zoom é controlado com o pé por Cedenho.
"Agora vamos começar a abrir para valer", avisa o professor da Unifesp (antiga Escola Paulista de Medicina). Cedenho dá dois pontos cirúrgicos, com 4 mm entre eles. Servem para reduzir o sangramento do testículo, quando o bisturi cortar.
O corte revela a massa amarela dos microtúbulos, labirinto testicular (veja desenho) onde ocorre a espermatogênese, ou seja, a produção de espermatozóides.
Cedenho aprofunda o corte, alcançando o centro do testículo. Examina os túbulos para escolher aqueles intumescidos e opacos, onde há mais espermatozóides.
Essa seleção é a grande vantagem da microdissecção sobre a microbiopsia. Outra é colher material do centro do órgão, aumentando a chance de encontrar gametas.
Às 15h20, Cedenho corta dois fragmentos. As biólogas os põem sobre as placas. Deixam a sala 9.
O médico termina de costurar o testículo e a bolsa escrotal. São 15h32 -uma hora e seis minutos para resgatar a esperança de J. S. no fundo de seu testículo.

Ordenha
Dezesseis minutos depois, Cedenho se encontra sentado à lupa Nikon SMZ-U do setor de Reprodução Humana do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, para a "aquisição de células". Vai "ordenhar" os túbulos com um par de pinças.
Os túbulos, que têm 150 a 200 mícrons (milésimos de mm) de espessura, são espremidos com as pinças. O conteúdo é diluído em uma solução. Com sorte, dará alguns espermatozóides.
As plaquetas, com suas microgotas de expectativa e células, passam para Maria Cristina Negrão. Ela já está instalada na alma do laboratório, um micromanipulador. Começa a busca por espermatozóides no material ordenhado.
Além dessa procura, os "joysticks" desse aparelho sensível permitem que se realize a Icsi (abreviatura em inglês para "injeção intracitoplasmática de espermatozóide"). Na Icsi, cada espermatozóide é injetado dentro de um óvulo, com micropipetas.
Não é o caso de J. S., por ora. Não foram achados espermatozóides maduros em seu material, só células precursoras (espermátides). Elas serão amadurecidas em um meio de cultura, durante 48 horas, para uma futura Icsi.

Eficiência
Agnaldo Cedenho travou contato com a microdissecção lendo um trabalho de Peter Schlegel, da Universidade Cornell (Nova York). Ele o havia apresentado em Dallas (Texas) no começo de maio, durante reunião anual da Associação Urológica Americana.
Schlegel aplicou a técnica para colher material de 27 pacientes com ausência de espermatozóides no sêmen (ou "azoospérmicos não-obstrutivos"). Comparando resultados com 22 biopsias tradicionais, relatou que a taxa de sucesso passou de 45% a 63%.
Isso quer dizer que, pelo método convencional, obtiveram-se espermatozóides em 10 dos 22 casos, contra 17 em 27 microdissecções. Aumentou também a quantidade de gametas por amostra.
Retirando apenas 10 mg de túbulos, Schlegel conseguiu em média 160 mil espermatozóides. Nas amostras 72 vezes maiores das biopsias (720 mg), a média foi de 64 mil células reprodutivas.
"Esse procedimento preserva muito mais o volume do testículo, pois retira fragmentos previamente escolhidos, aumenta as chances de sucesso no tratamento, evita sangramento e possibilita a criopreservação (congelamento) de espermatozóides para futuros procedimentos", diz Cedenho.
Por ora, a sofisticação está disponível somente para clientes privados de Cedenho no Hospital Oswaldo Cruz. A mesma equipe trabalha na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que ainda não dispõe dos mesmos recursos técnicos (microscópio cirúrgico e micromanipulador), o que pode ocorrer ainda este ano.


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