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São Paulo, quinta-feira, 10 de julho de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

O boné do presidente

Na semana passada, posto sobre as madeixas presidenciais, um boné do MST se transformou em mote de uma grande discussão: Sua Excelência fez bem em vestir o boné?
Além do gesto em si, o que também causou discussão (a julgar pelas inúmeras mensagens dos leitores) foi o uso do verbo "vestir". Não foram poucos os que escreveram para perguntar se seria mesmo esse o verbo adequado.
Vamos logo aos dicionários. O "Aurélio" diz que uma das acepções de "vestir" é "pôr ou trazer sobre si (qualquer peça de vestuário)". E "boné" (que vem do francês) é peça de vestuário? Voltemos ao "Aurélio": "Peça de vestuário para a cabeça, de copa redonda, com uma pala sobre os olhos".
Moral da história: se "vestir" é "pôr ou trazer sobre si qualquer peça de vestuário" e "boné" é "peça de vestuário", é mais do que possível "vestir o boné", como se ouviu ou leu nos meios de comunicação, na semana passada.
O fato é que, sabe Deus por quê, são comuns alguns "boatos" sobre o significado e o uso de certas palavras. "Eu não boto nada; quem bota é galinha", por exemplo, é um desses tantos "boatos". De acordo com essa "tese", só as galinhas botam. Será?
As galinhas botam ou põem. Por que será que as que botam são chamadas de "poedeiras"? O termo "poedeira" não é da família de "pôr" (na verdade, da forma antiga de "pôr" -"poer")? Por acaso "poedeira" não é a "galinha que já põe ou que põe muitos ovos", como diz o "Aurélio"? Ora bolas, se a galinha é poedeira, é claro que ela põe (ou bota).
Por falar em "botar", basta ir aos dicionários para constatar que muitas das acepções desse verbo são as mesmas de "pôr". Sobre "botar", minha edição do dicionário de Caldas Aulete (de 1964) diz isto: "Tem as mesmas acepções que os verbos "deitar" e "pôr", mas é de uso menos polido". Aulete dá alguns exemplos, entre os quais este: "Bote lá as suas contas" (de "Amor de Salvação", de Camilo Castelo Branco).
O "Houaiss" (lançado em 2001) dá alguns dos usos de "botar" ("botar água no feijão" é um deles) como típicos do registro informal da língua, o que, "mutatis mutandis", não é muito diferente do que diz Aulete.
O outro lado da questão fica por conta da última edição do "Aurélio" ("Novo Aurélio Século XXI", de 1999), que atribui a "botar" várias das acepções de "pôr", sem nenhuma restrição de registro. São do "Aurélio" estes exemplos: "Botou as economias no banco"; "Botamos a mesa e jantamos"; "Botou uma loja de eletrodomésticos"; "A criança quis botar o dedo no buraco da fechadura".
Outra palavra que frequenta a lista das "suspeitas" é "justamente". Há quem diga que ela só pode ser usada quando equivale a "de modo justo", "com justiça", "de acordo com a justiça, com a equidade", como se vê, por exemplo, em "Sempre agiu justamente".
Não é bem assim. Se um dos sentidos de "justo" é "exato", "preciso", por que não se poderia usar "justamente" com o sentido de "exatamente", "precisamente"? Sabe Deus! Vejamos o "Houaiss": "Ele é justamente a pessoa em quem eu estava pensando para o cargo"; "Justamente quando íamos desistir, encontramos quem tanto procurávamos".
Bem, voltando ao vestuário (que não se deve confundir com "vestiário"), que tal "calçar as luvas"? Pode calçá-las, caro leitor. Segundo o "Aurélio", "calçar" é "revestir os pés (de botas, sapatos, chinelos, meias etc.), as pernas (de calças ou calções etc.), as mãos (de luvas)". Como se vê, é bom ter cuidado com os "boatos". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras E-mail - inculta@uol.com.br

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