São Paulo, segunda, 10 de agosto de 1998

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COTIDIANO IMAGINÁRIO
Mare nostrum

MOACYR SCLIAR

A idéia inicial era proteger o prédio com um fosso cheio de água, semelhante àqueles dos castelos medievais. O fosso foi feito, mas logo se verificou que não proporcionava a proteção suficiente; muitos dos manifestantes que ali vinham para demonstrações de protesto sabiam nadar e não tinham a menor dificuldade em vencer os poucos metros de água em rápidas braçadas - agradecendo ainda o banho gratuito. A solução foi, então, aumentar o fosso, que agora já tinha a largura de um rio. Mesmo assim os manifestantes continuavam chegando à porta principal. Não a nado - piranhas e jacarés tinham sido colocados na água, como proteção adicional, mas em barcos. Ainda que muitos destes pudessem ser repelidos, desembarques heróicos, tipo Dia D da Segunda Guerra, registravam-se a todo momento.
Nova reunião dos responsáveis pela segurança decidiu pela ampliação da massa líquida. Para isso o suprimento habitual de água não era suficiente, de modo que foi necessário canalizar um lago que ali existia, a poucos quilômetros de distância. Mais uma vez, contudo, a pertinácia dos manifestantes superou as expectativas. Agora eles não vinham nadando ou em pequenos barcos; agora vinham em velhos navios. Chegou-se à conclusão de que se fazia necessário ampliar ainda mais a barreira líquida, de modo a transformar a viagem numa aventura, se não impossível, pelo menos arriscada. Dessa vez, buscou-se água mais longe: do próprio oceano, a milhares de quilômetros de distância. Despesa cara, porém justificada pela necessidade de defesa. Ponderou-se também que o novo mar poderia atrair turistas para as praias recém-criadas, além de desenvolver a indústria da pesca.
Só que a proteção se revelou ilusória. Os manifestantes conseguiram grandes navios (um do tamanho do Titanic) e continuavam chegando. O mar foi sendo ampliado mais e mais.
O prédio fica agora numa pequena ilha no meio dessa imensa massa d'água. De longe, os curiosos podem observá-lo, por meio de potentes binóculos. Vêem pessoas bem vestidas que entram e saem despreocupadamente. Mas ninguém sabe o que fazem lá.


O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal



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