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GILBERTO DIMENSTEIN
Nesse show do milhão, quem paga é você
Pelos cálculos da Receita Federal, o contribuinte
brasileiro transfere cerca de R$ 1,4
milhão diariamente para os produtores de refrigerantes -significa que empresas como a Coca-Cola sorvem recursos públicos e engordam seu faturamento.
Tudo na mais perfeita legalidade, graças aos créditos fiscais. Ou
seja, elas desfrutam da possibilidade de pagar menos impostos,
numa trama realizada em gabinetes ministeriais e parlamentares, e mantida, na maioria das vezes, pela engenhosidade de grupos tão poderosos quanto silenciosos. "É um disparate. Dinheiro
que, em tese, poderia estar indo
para cestas básicas ou saneamento ajuda a vender refrigerantes
sem teor nutritivo", afirma Everardo Maciel, secretário da Receita Federal.
Para avaliar o que daria para
fazer com R$ 1,4 milhão por dia:
imagine um programa de renda
mínima transferindo um salário
mínimo mensal para 245 mil famílias miseráveis. Numa estimativa conservadora -cada família
com seis integrantes-, o programa ajudaria 1,5 milhão de pessoas.
Para a imensa maioria dos brasileiros, o fluxo de dinheiro público é uma caixa-preta; como se vê
(ou se deixa de ver) nos ingênuos
refrigerantes, apenas símbolos
exóticos dessa monumental ignorância. O debate sobre o sigilo
bancário, flexibilizado semana
passada na Câmara, coloca em
evidência o tamanho do desconhecimento sobre como sai, como
deixa de sair e como é usado o dinheiro do cidadão.
"Mesmo quem, em matéria de
impostos, acha que sabe muito,
sabe muito pouco", diz Everardo
Maciel, supostamente o brasileiro
mais bem informado sobre os números dos impostos.
Ninguém conhece, segundo ele,
o tamanho da sonegação e dos
vazamentos de recursos públicos
provocados pelas brechas legais.
Ao pedir aos deputados e senadores mais poder para investigar sonegação, o governo divulgou um estudo baseado na arrecadação da CPMF; descontado
direto da conta bancária, esse imposto dá uma idéia da movimentação financeira do contribuinte.
O estudo analisou uma amostra
de 62 indivíduos isentos do pagamento de Imposto de Renda. Para
entrar nessa humilde categoria,
exige-se renda inferior a R$ 900
mensais. Mas os 62 isentos ostentam um movimento bancário de
milionários: alguns deles giram
R$ 10 milhões por ano.
Mais disparates contidos no
mesmo estudo. Registradas como
inativas na Receita Federal, 24
empresas movimentaram R$ 34
bilhões, milagroso capital de giro.
Detectou-se que 131 omissos
(aqueles que nada declaram e,
por isso, nem sequer aparecem como contribuintes) movimentaram, cada um, no ano passado,
mais de R$ 10 milhões.
A Receita leva bordoadas porque, ao exigir o direito de usar os
dados da CPMF como pistas da
sonegação, estaria ferindo o princípio do sigilo fiscal.
Na visão de Everardo Maciel,
confrontada por notáveis juristas,
o que se está ferindo é o "direito
do sonegador" de escudar-se no
sigilo bancário.
Ao detectar sinais tão grosseiros de sonegação, transmitidas
pela movimentação bancária, os
estudos são mais uma forma de
recontar a crônica debilidade nacional -a impunidade favorecida pela desinformação, um dos
fatores que explicam por que o
Brasil é como é, tão rico em potencialidade e tão pobre socialmente.
O problema da sonegação não é
só do sonegador. Mas do próprio
governo, e não por causa apenas
da dificuldade de investigação.
Sobram motivos para alguém se
sentir impelido a não dar dinheiro ao governo, além de razões puramente materiais.
É consenso que o dinheiro público é desperdiçado, perdendo-se
na incompetência e na corrupção.
Basta lembrar das fortunas pagas para as aposentadorias dos
funcionários do setor público; um
funcionário do Judiciário ganha
23 vezes mais do que o pobre mortal que depende do INSS.
Quanto se enterrou no Nordeste para enfrentar a seca? Ou
quanto se jogou fora em incentivos para a Amazônia, descalabro
denunciado neste jornal pelo repórter Josias de Souza. Alguém
consegue estimar quanto já se
torrou para que os políticos elegessem seus sucessores ou se reelegessem?
A sensação é que o dinheiro
público passa sempre por mais
mãos do que deveria.
É o que embala a versão oficial
do show do milhão no palco do
Senado. Antônio Carlos Magalhães e Jader Barbalho acusam-se mutuamente de salafrários,
cada qual vendo bandalheira no
patrimônio de seu contendor.
Sempre disposta a achar (muitas vezes erradamente) que todo
e qualquer político é um delinquente, a opinião pública acompanha o duelo com a sólida suspeita de que ambos devem ter razão -ambos supostamente beneficiados pelo binômio impunidade/desinformação.
Mais um motivo para dizer
que, se na cobertura alguns conseguem se enriquecer tão facilmente, injusto cobrar honestidade dos que estão no porão.
Guiados pelo mau exemplo de
quem deveria ser o primeiro a
dar o exemplo, muitos encontram pretexto para sonegar.
PS - A propósito, há um jeito
de Jader Barbalho e ACM saírem
limpos dessa disputa, com atestado de boa conduta: submeterem-se à auditoria de uma empresa
independente, abrindo as contas
bancárias de pelo menos cinco
amigos e parentes mais próximos.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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