São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 2000

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GILBERTO DIMENSTEIN

Nesse show do milhão, quem paga é você

Pelos cálculos da Receita Federal, o contribuinte brasileiro transfere cerca de R$ 1,4 milhão diariamente para os produtores de refrigerantes -significa que empresas como a Coca-Cola sorvem recursos públicos e engordam seu faturamento.
Tudo na mais perfeita legalidade, graças aos créditos fiscais. Ou seja, elas desfrutam da possibilidade de pagar menos impostos, numa trama realizada em gabinetes ministeriais e parlamentares, e mantida, na maioria das vezes, pela engenhosidade de grupos tão poderosos quanto silenciosos. "É um disparate. Dinheiro que, em tese, poderia estar indo para cestas básicas ou saneamento ajuda a vender refrigerantes sem teor nutritivo", afirma Everardo Maciel, secretário da Receita Federal.
Para avaliar o que daria para fazer com R$ 1,4 milhão por dia: imagine um programa de renda mínima transferindo um salário mínimo mensal para 245 mil famílias miseráveis. Numa estimativa conservadora -cada família com seis integrantes-, o programa ajudaria 1,5 milhão de pessoas.
Para a imensa maioria dos brasileiros, o fluxo de dinheiro público é uma caixa-preta; como se vê (ou se deixa de ver) nos ingênuos refrigerantes, apenas símbolos exóticos dessa monumental ignorância. O debate sobre o sigilo bancário, flexibilizado semana passada na Câmara, coloca em evidência o tamanho do desconhecimento sobre como sai, como deixa de sair e como é usado o dinheiro do cidadão.
"Mesmo quem, em matéria de impostos, acha que sabe muito, sabe muito pouco", diz Everardo Maciel, supostamente o brasileiro mais bem informado sobre os números dos impostos.
Ninguém conhece, segundo ele, o tamanho da sonegação e dos vazamentos de recursos públicos provocados pelas brechas legais.

Ao pedir aos deputados e senadores mais poder para investigar sonegação, o governo divulgou um estudo baseado na arrecadação da CPMF; descontado direto da conta bancária, esse imposto dá uma idéia da movimentação financeira do contribuinte.
O estudo analisou uma amostra de 62 indivíduos isentos do pagamento de Imposto de Renda. Para entrar nessa humilde categoria, exige-se renda inferior a R$ 900 mensais. Mas os 62 isentos ostentam um movimento bancário de milionários: alguns deles giram R$ 10 milhões por ano.
Mais disparates contidos no mesmo estudo. Registradas como inativas na Receita Federal, 24 empresas movimentaram R$ 34 bilhões, milagroso capital de giro.
Detectou-se que 131 omissos (aqueles que nada declaram e, por isso, nem sequer aparecem como contribuintes) movimentaram, cada um, no ano passado, mais de R$ 10 milhões.
A Receita leva bordoadas porque, ao exigir o direito de usar os dados da CPMF como pistas da sonegação, estaria ferindo o princípio do sigilo fiscal.
Na visão de Everardo Maciel, confrontada por notáveis juristas, o que se está ferindo é o "direito do sonegador" de escudar-se no sigilo bancário.

Ao detectar sinais tão grosseiros de sonegação, transmitidas pela movimentação bancária, os estudos são mais uma forma de recontar a crônica debilidade nacional -a impunidade favorecida pela desinformação, um dos fatores que explicam por que o Brasil é como é, tão rico em potencialidade e tão pobre socialmente.
O problema da sonegação não é só do sonegador. Mas do próprio governo, e não por causa apenas da dificuldade de investigação.
Sobram motivos para alguém se sentir impelido a não dar dinheiro ao governo, além de razões puramente materiais.
É consenso que o dinheiro público é desperdiçado, perdendo-se na incompetência e na corrupção.
Basta lembrar das fortunas pagas para as aposentadorias dos funcionários do setor público; um funcionário do Judiciário ganha 23 vezes mais do que o pobre mortal que depende do INSS.
Quanto se enterrou no Nordeste para enfrentar a seca? Ou quanto se jogou fora em incentivos para a Amazônia, descalabro denunciado neste jornal pelo repórter Josias de Souza. Alguém consegue estimar quanto já se torrou para que os políticos elegessem seus sucessores ou se reelegessem?

A sensação é que o dinheiro público passa sempre por mais mãos do que deveria.
É o que embala a versão oficial do show do milhão no palco do Senado. Antônio Carlos Magalhães e Jader Barbalho acusam-se mutuamente de salafrários, cada qual vendo bandalheira no patrimônio de seu contendor.
Sempre disposta a achar (muitas vezes erradamente) que todo e qualquer político é um delinquente, a opinião pública acompanha o duelo com a sólida suspeita de que ambos devem ter razão -ambos supostamente beneficiados pelo binômio impunidade/desinformação.
Mais um motivo para dizer que, se na cobertura alguns conseguem se enriquecer tão facilmente, injusto cobrar honestidade dos que estão no porão.
Guiados pelo mau exemplo de quem deveria ser o primeiro a dar o exemplo, muitos encontram pretexto para sonegar.

PS - A propósito, há um jeito de Jader Barbalho e ACM saírem limpos dessa disputa, com atestado de boa conduta: submeterem-se à auditoria de uma empresa independente, abrindo as contas bancárias de pelo menos cinco amigos e parentes mais próximos.
E-mail - gdimen@uol.com.br


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