São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2001

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GILBERTO DIMENSTEIN

Socorro, chame o psicólogo

Ao final da peça "Um Novo Amanhecer", exibida em São Paulo, ouve-se choro na platéia; alguns espectadores, mais contidos, enxugam as lágrimas e disfarçam a emoção.
A situação nada teria de estranho se a platéia não fosse formada por policiais, desses que andam desafiadoramente nas ruas, imponentes, amedrontando marginais. Homens -principalmente policiais- não são educados para chorar.
Eles vêem retratadas no palco suas mais íntimas fragilidades, quase nunca admitidas publicamente. Aos poucos, a trama os fisga, atando-os aos personagens, com falas que nem parecem ter sido inventadas. Na verdade, não foram mesmo. As histórias de vida encenadas são reais, oriundas dos consultórios psicológicos da PM, extraídas de relatórios sigilosos.
Tirar as histórias do consultório e distribuí-las entre personagens foi idéia do tenente-coronel e psicólogo Ib Martins, chefe do departamento de recrutamento da PM. Obviamente sem citar nomes, repassou os segredos vazados no consultório a um grupo de atores amadores para inspirar a elaboração do roteiro.
"Queria mostrar que fragilidade psicológica não é "frescura" nem sintoma de falta de masculinidade", conta Ib, preocupado com a clandestinidade dos distúrbios mentais na tropa e impressionado, em especial, com a quantidade de suicídios.
A auto-estima da corporação, segundo ele, está minada -e deve estar ainda pior por causa do assalto, semana passada, ao 2º Comando de Policiamento da Área Metropolitana.
Aquelas lágrimas no teatro informam que a sociedade precisa estar atenta não só à selvageria dos bandidos mas também à degradação -inclusive emocional- dos policiais.

Desarmado diante dessa degradação, o comando da Polícia Militar de São Paulo encaminhou à Secretaria da Segurança pedido de contratação, em tempo integral, de um batalhão de 255 psicólogos para cuidar da saúde mental da tropa.
Faz sentido: a doença mental é uma aniquiladora de policiais. Nos últimos dez anos, para cada baixa de soldado provocada por tiroteio é registrado um suicídio.
No ano passado, foram 33 mortes em serviço para 27 suicídios. Os psiquiatras da PM estimam que tenham sido cometidas 200 tentativas de suicídio num agrupamento de 87 mil pessoas. É a saliência mais visível e aguda dos distúrbios que afetam soldados e oficiais, vítimas de uma mistura de depressão, drogas e álcool.
"O estresse na tropa é devastador", afirma o coronel reformado José Vicente da Silva, do Instituto Fernand Braudel, um dos mais importantes estudiosos de segurança pública no Brasil.
O assalto ao quartel-general, na semana passada, faz parte desse contexto de deterioração, no qual a polícia se sente impotente e frágil diante da criminalidade. Muitas vezes, participando da própria delinquência, articulada com as quadrilhas.

Informei na coluna passada que um morador de rua em São Paulo, fazendo bicos, ganha, em média, R$ 250 mensais. Um PM em início de carreira, com diploma de segundo grau, recebe um salário de R$ 600 mensais para enfrentar marginais com armas melhores do que as suas.
Por causa dos baixos salários, a maioria faz bicos como segurança privada, acumulando dois períodos; em ambos, o policial está submetido ao estresse de quem coloca a vida em risco.
A maior parte dos policiais morre mesmo é fazendo bico, quando está menos protegida. Para as 33 mortes em serviço, no ano passado, houve 171 nas folgas.
Note que já houve uma expressiva melhora: em 1999, os bicos mataram 271 policiais.

Nas suas confissões psicológicas, policiais dizem que são tratados como se fossem delinquentes, sem respeito, uma espécie de escória.
Nunca se prendeu tanta gente, mas a criminalidade está por todos os lados, a sensação de insegurança não pára de crescer. Os policiais são apontados como fracassados, bodes expiatórios da crise social. Ganham mal, arriscam a vida e, para completar, são chamados de incompetentes, cruéis e violentos. Muitos -de fato, violentos e cruéis- desafogam o ressentimento nos prisioneiros.
Descontam a raiva nos presos e também nos alívios fugazes. Eles vivem num ambiente em que beber muito não é feio e é fácil o acesso a drogas, recursos usados para mitigar a ansiedade, o estresse e a depressão.
São armas emocionais ambulantes - e, pior, engatilhadas.

Entendem-se, assim, as lágrimas do teatro, as estatísticas de suicídio e por que a polícia é, muitas vezes, mais um ingrediente a estimular a insegurança generalizada.
Se eles não conseguem defender nem sequer um quartel -ou se muitos deles não conseguem proteger a própria vida, ameaçada nos bicos ou nas crises depressivas-, imagine a desproteção do cidadão comum.

PS- Sinal dos tempos de crescente melhoria na escolaridade brasileira. A PM de São Paulo abriu concurso para soldado. Todos os candidatos têm diploma de segundo grau; 30% cursaram faculdade.
E-mail - gdimen@uol.com.br


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