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URBANIDADE
Uma profissão sem nome
GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA
Durante 16 anos, Sandra Leone acordava de
madrugada e repetia o meticuloso ritual de preparar dezenas de
instrumentos cirúrgicos para as
operações. Chegava a vislumbrar, por instantes, beleza na
composição harmônica das peças, estendidas numa bandeja.
Não sabia ainda que estava ensaiando, naqueles arranjos assépticos e metálicos, uma nova
profissão.
Incomodada com a frieza cirúrgica e com o fato de passar
tanto tempo entre doentes, ela se
cansou da rotina hospitalar e
trocou os instrumentos cirúrgicos pelas flores. "Sinceramente,
não sei definir o que faço", diz.
Sandra integra a legião de jovens que não sabe de que gosta
quando escolhe a faculdade. Fez
direito, mas, desiludida, estudou
em cursos técnicos de instrumentação cirúrgica. Depois de abandonar as mesas de operação,
descobriu, por acaso, que dava
para ganhar dinheiro com algo
que fazia apenas por prazer.
Habitualmente amigas lhe pediam que decorasse com flores as
suas festas. Sandra não cobrava,
era passatempo. "Compensava
minha timidez crônica com a
paixão solitária pelos detalhes."
Até que um dia uma executiva
estava num jantar, gostou dos
arranjos e quis saber de onde vinham. Sem tempo de cuidar de
sua casa, convidou Sandra para
ser uma espécie de "assessora para assuntos florais". "Não entendi direito, achei estranho, mas tinha tempo e aceitei."
A tarefa seria fazer as composições de flores, mantendo-as
frescas, nos vasos de dentro da
casa. Pelo prazer do detalhe,
Sandra deixava pequenas surpresas pela casa.
Estava ali diante de uma nova
atividade profissional, um misto
de decoradora com jardineira,
"baby-sitter floral" e até, quem
sabe, psicóloga. "Tentava conhecer um pouco os donos da casa
para saber que tipo de flores
combinava mais com eles." Com
o estresse paulistano, mais mulheres executivas, de agendas entulhadas, sempre apressadas demais para afazeres domésticos,
começaram a contratar o serviço
-mais uma demanda da vida
atribulada do paulistano.
Dos tempos antigos sobrou um
hábito. Para comprar flores, continua acordando quando ainda
está escuro. Agora com prazer:
segundo ela, um dos bons programas da madrugada paulistana é observar as cores e sentir os
cheiros das flores na Ceagesp,
quase um oásis para quem está
ao lado do rio Pinheiros e das
marginais. "Isso transformou
minha vida." A profissão, ainda
sem nome, já tem clientes.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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