São Paulo, segunda-feira, 11 de abril de 2005

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MOACYR SCLIAR

Grilos

 Enquanto no Brasil há luta de galos, na China o quente são as lutas de grilos. Os grilos machos se atacam quando colocados no mesmo ambiente, uma caixa de pequenas dimensões, o que reduz consideravelmente a platéia do espetáculo. A luta não é proibida. O apaixonado pela luta de grilos deve estar disposto a pagar altos preços pelos insetos mais fortes. Há grilos que custam até US$ 1.000 (R$ 2.800). Mas, em geral, os preços são bem mais baixos e insetos que apenas cantam podem ser comprados por menos de US$ 10 (R$ 28). Folha Online (Cláudia Trevisan), 5.abr.2005

A milenar história da luta de grilos na China viu-se seriamente abalada com a inesperada entrada em cena de um inseto que até então fora apenas conhecido como personagem de uma história de ficção: o Grilo Falante. Todo mundo achava que ele tinha se aposentado depois que Pinóquio se transformara num menino de verdade. Mas não. Não apenas o Grilo Falante não se aposentara como saíra pelo mundo, em busca de um lugar onde pudesse cumprir sua missão de consciência acusadora. E assim chegara à China, onde encontrara grilos submetidos a uma triste sina: eram obrigados a lutar para diversão de uns poucos espectadores.
No meio deles, o Grilo Falante se destacava, sobretudo porque falava duas línguas, a dos humanos e a da sua própria espécie. O que considerava uma dádiva do destino: era uma oportunidade única para que assumisse o papel de defensor dos oprimidos. Assim como Espártaco liderara uma revolta dos gladiadores, pondo em xeque o poder do Império Romano, ele lideraria os grilos não falantes numa histórica rebelião. Empolgado, fazia discurso atrás de discurso:
- Nós, grilos, somos vítimas dos humanos -proclamava. - Eles fazem com que a gente se mate, e para quê? Para que tenham diversão, uma diversão cruel, doentia. Uni-vos, grilos! Nada tendes a perder, a não ser a vossa condição de escravos!
No começo, os grilos ficaram perplexos, sem saber o que fazer. Mas aos poucos foram se entusiasmando com a pregação e acabaram autorizando o Grilo Falante a negociar com os humanos condições de vida mais justas.
Quando os proprietários dos grilos viram-se diante de tão estranho interlocutor, ficaram surpresos. Acharam que tratava-se de um rebelde, um grilo treinado por aquele estudante que enfrentara os tanques na praça da Paz Celestial. O Grilo Falante disse-lhes que nada tinha a ver com disputas políticas. O que ele queria era proteção para seus companheiros. E listou suas condições: as lutas, daí em diante, deveriam ser apenas simuladas, de brincadeira. A caixa em que lutavam seria confortável, com ar condicionado. Os grilos teriam direito a rações duplas de alimentos, e assim por diante.
Na falta de alternativa, os donos dos grilos aceitaram as condições. Mas estão atrás do Pinóquio. Pagarão a ele qualquer quantia para que leve o Grilo Falante embora da China.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas na Folha.


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