|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
Grilos
Enquanto no Brasil há luta de galos,
na China o quente são as lutas de grilos. Os grilos machos se atacam
quando colocados no mesmo ambiente, uma caixa de pequenas dimensões, o que reduz consideravelmente a platéia do espetáculo. A luta
não é proibida. O apaixonado pela
luta de grilos deve estar disposto a
pagar altos preços pelos insetos mais
fortes. Há grilos que custam até US$
1.000 (R$ 2.800). Mas, em geral, os
preços são bem mais baixos e insetos
que apenas cantam podem ser comprados por menos de US$ 10 (R$ 28).
Folha Online (Cláudia Trevisan),
5.abr.2005
A milenar história da luta
de grilos na China viu-se seriamente abalada com a inesperada entrada em cena de um inseto que até então fora apenas conhecido como personagem de
uma história de ficção: o Grilo Falante. Todo mundo achava que
ele tinha se aposentado depois
que Pinóquio se transformara
num menino de verdade. Mas
não. Não apenas o Grilo Falante
não se aposentara como saíra pelo mundo, em busca de um lugar
onde pudesse cumprir sua missão
de consciência acusadora. E assim chegara à China, onde encontrara grilos submetidos a uma
triste sina: eram obrigados a lutar
para diversão de uns poucos espectadores.
No meio deles, o Grilo Falante
se destacava, sobretudo porque
falava duas línguas, a dos humanos e a da sua própria espécie. O
que considerava uma dádiva do
destino: era uma oportunidade
única para que assumisse o papel
de defensor dos oprimidos. Assim
como Espártaco liderara uma revolta dos gladiadores, pondo em
xeque o poder do Império Romano, ele lideraria os grilos não falantes numa histórica rebelião.
Empolgado, fazia discurso atrás
de discurso:
- Nós, grilos, somos vítimas dos
humanos -proclamava. - Eles
fazem com que a gente se mate, e
para quê? Para que tenham diversão, uma diversão cruel, doentia. Uni-vos, grilos! Nada tendes a
perder, a não ser a vossa condição
de escravos!
No começo, os grilos ficaram
perplexos, sem saber o que fazer.
Mas aos poucos foram se entusiasmando com a pregação e acabaram autorizando o Grilo Falante a negociar com os humanos
condições de vida mais justas.
Quando os proprietários dos
grilos viram-se diante de tão estranho interlocutor, ficaram surpresos. Acharam que tratava-se
de um rebelde, um grilo treinado
por aquele estudante que enfrentara os tanques na praça da Paz
Celestial. O Grilo Falante disse-lhes que nada tinha a ver com disputas políticas. O que ele queria
era proteção para seus companheiros. E listou suas condições:
as lutas, daí em diante, deveriam
ser apenas simuladas, de brincadeira. A caixa em que lutavam seria confortável, com ar condicionado. Os grilos teriam direito a
rações duplas de alimentos, e assim por diante.
Na falta de alternativa, os donos dos grilos aceitaram as condições. Mas estão atrás do Pinóquio. Pagarão a ele qualquer
quantia para que leve o Grilo Falante embora da China.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em reportagens publicadas na Folha.
Texto Anterior: Na Europa, critério para entrada em unidade intensiva só existe no papel Próximo Texto: Consumo: Comerciante diz não ter sido avisado sobre corte de energia Índice
|