São Paulo, Domingo, 11 de Abril de 1999
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GREVES

Resignação demonstra cidadania incipiente

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
da Sucursal de Brasília

A comparação do comportamento de passageiros de meios de transporte coletivo esta semana em Washington e São Paulo pode dizer muito a respeito do sentimento de cidadania existente nas sociedades dos EUA e do Brasil.
Na terça-feira, segundo dia da greve dos motoristas de ônibus em São Paulo, passageiros entrevistados nos pontos em que aguardavam, havia horas, por ônibus que nunca apareciam demonstravam resignação e cética esperança.
"Vamos ver, quem sabe mais tarde aparece algum", dizia uma senhora que, pela segunda vez consecutiva, perdia sua jornada de trabalho no emprego doméstico.
Nem a frustração de que outro serviço público -o telefone de cabine- a impedia até de explicar à patroa a razão de sua falta foi suficiente para lhe tirar a paciência.
O tom de todos os outros depoimentos colhidos por repórteres de rádio de passageiros frustrados durante a greve era semelhante: calma, "o que fazer?".
Na quarta-feira, um dos confortáveis trens do metrô da capital dos Estados Unidos atrasou 30 minutos para aparecer na estação Smithsonian.
Quando o trem finalmente chegou, centenas de funcionários públicos e turistas se acotovelaram para nele entrar.
Mas um defeito qualquer no trem fez seu piloto pedir aos passageiros que deixassem os vagões e esperassem por outro em seguida.
Ocorreu, então, um motim a bordo. Os relatos são imprecisos sobre como a revolta se iniciou.
O fato é que ninguém saiu dos carros, a não ser depois de a polícia chegar e obrigar todos a obedecer.
Uma interpretação apressada desses dois episódios pode concluir que, como afirmou Sérgio Buarque de Hollanda, citando o escritor Ribeiro Couto, em "Raízes do Brasil" (1936), "a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade -daremos ao mundo o homem cordial".

Quebra-quebra
Não é bem assim. Nem sempre atrasos nos meios de transporte são recebidos pelos brasileiros com expressões de "lhaneza no trato,..., generosidade", como dizia Sérgio Buarque de Hollanda.
Entre 1974 e 1976, por exemplo, diversos quebra-quebras ocorreram em estações de trem em São Paulo e Rio de Janeiro, num "protesto selvagem", expressão utilizada pelos sociólogos José Álvaro Moisés e Verena Martinez-Alier, no estudo "A Revolta dos Suburbanos ou Patrão, o Trem Atrasou" (1978).
Pela tese de Moisés e Martinez-Alier, a violência foi a forma possível de expressão, repentina e inorganizada, em face da deterioração de um serviço público.
Talvez a democracia tenha permitido ao brasileiro canalizar insatisfação por métodos pacíficos.
Mais provável, no entanto, é que a reação insubordinada dos americanos em Washington seja o resultado de uma enraizada consciência de direitos de consumidor e contribuinte enquanto a passividade dos brasileiros em São Paulo resulte de uma ainda incipiente noção de cidadania, reprimida por décadas por regimes políticos autoritários ou realidades econômicas e sociais excludentes.


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