São Paulo, terça-feira, 11 de junho de 2002

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MARILENE FELINTO

O terno que encobre o pênis

O paletó termina na altura do quadril, formando uma espécie de sainha protetora, uma cobertura para as partes mais graves do homem. Quem inventou essa roupa estranha e contida, o terno? Aeroporto de Congonhas, São Paulo, às 7h30 da manhã. É o movimento da ponte aérea -o aeroporto fica coalhado de executivos de terno indo para o Rio de Janeiro. Dizem que é uma das rotas aéreas mais movimentadas do mundo.
Toca o meu celular e é minha irmã, escandalizada, contando que roubaram R$ 400 de seu "fundo de investimento" . "Roubaram? Quem roubou?", pergunto. Ela se enrola para explicar, não sabe direito. "O banco!" "Como assim, o banco?", pergunto. "Escutei no rádio que foi o Banco Central, o governo, a droga do governo!", ela desabafa. "Dizem que eles mudaram o jeito de calcular e, então, roubaram de todo mundo", continuou, eufórica. "Foi o ministro e aquele homem do Banco Central, o que você acha que eu faço?", insistiu.
Desfilam pela minha imaginação, de terno e gravata, o ministro Malan e o "homem do Banco Central", provavelmente Armínio Fraga. Seguro certa vontade de rir. Como estou sonolenta, parece tudo uma alucinação passageira, uma espécie de leve pesadelo com centenas de homens de terno.
Qualquer mulher que tenha entrado num avião da ponte aérea de manhã cedo, saindo de São Paulo para o Rio de Janeiro, já sentiu o peso. Dá até certo constrangimento: dezenas de homens de terno para quatro ou cinco fêmeas sonolentas. A maioria delas, quase sempre, tentando imitar o vestuário dos machos: usando os horríveis "terninhos" ou costumes de executivas. Gente previsível, mundo monótono.
Coitada da minha irmã. Justo ela que não tem dinheiro para nada. Perguntou se não tinham roubado do meu. Respondi que não tenho fundo. "Será que roubaram também da poupança?", acrescento. E fica por isso mesmo. Desligamos. Espero no aeroporto, intrigada com a notícia. Procuro-a no jornal que trago no colo. Mas leio outra coisa: que um megainvestidor americano diz sobre a economia/eleição brasileira "ou Serra ou o caos". Como é? Que o "mercado" quer impor José Serra como presidente do Brasil, quer enfiar goela abaixo do povo o candidato do PSDB!
Que escândalo. Fecho o jornal. Ora, já está mais do que na hora de o Brasil ter um presidente que não seja um desses almofadinhas das elites de sempre: os playboys de Alagoas, os coronéis da oligarquia nordestina, os intelectuais apáticos de São Paulo. Como aceitar calado que o presidente de um país seja escolhido por interesses externos, fabricados por economistas servis e covardes?
Volto a olhar a paisagem do aeroporto: os paletós sisudos, as calças folgadas, o uniforme que padroniza os homens. Ora, como mudar interesses e poderes constituídos, arraigados no costume de mandar, de fazer e acontecer? Todas as associações que a psicanálise faz entre poder e pênis, entre sexo e comportamento, estavam representadas naquele vai-e-vem de ternos pelos saguões.
Dirijo-me à lanchonete do saguão principal. Ali, a multidão de ternos está aglomerada diante de um aparelho de TV: é um jogo de futebol da Copa do Mundo, claro. Ali eles se desnudam -coçam o saco em público, nervosos como moleques. Usam terno para isso, vai ver. Para esconder os volumes, para conferir um ar de cerimônia àquela coisa exposta e ao poder sórdido que manipulam: dos dólares americanos que investem ou não onde querem, passando pela roubalheira calculada do dinheiro das mulheres pobres, ao vagabundo jogo de bola que impõem ao mundo como coisa de gravíssima importância.

E-mail - mfelinto@uol.com.br



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