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MARILENE FELINTO
O terno que encobre o pênis
O paletó termina na altura do quadril, formando uma espécie de sainha protetora, uma cobertura para as partes mais graves do homem. Quem inventou essa roupa estranha e contida, o terno? Aeroporto de Congonhas, São Paulo, às 7h30 da manhã. É o movimento da ponte aérea -o aeroporto fica coalhado
de executivos de terno indo para o Rio de Janeiro. Dizem que é uma
das rotas aéreas mais movimentadas do mundo.
Toca o meu celular e é minha irmã, escandalizada, contando que
roubaram R$ 400 de seu "fundo de investimento" . "Roubaram?
Quem roubou?", pergunto. Ela se enrola para explicar, não sabe direito. "O banco!" "Como assim, o banco?", pergunto. "Escutei no rádio que foi o Banco Central, o governo, a droga do governo!", ela desabafa. "Dizem que eles
mudaram o jeito de calcular e, então, roubaram de todo mundo", continuou, eufórica. "Foi o ministro e aquele homem do Banco Central, o que você acha que eu faço?", insistiu.
Desfilam pela minha imaginação, de terno e gravata, o ministro Malan e o "homem do Banco Central", provavelmente Armínio Fraga. Seguro certa vontade de
rir. Como estou sonolenta, parece tudo uma alucinação passageira,
uma espécie de leve pesadelo com centenas de homens de terno.
Qualquer mulher que tenha entrado num avião da ponte aérea de manhã cedo, saindo de São Paulo para o Rio de Janeiro, já sentiu o peso. Dá até certo constrangimento: dezenas de homens de terno para quatro ou cinco fêmeas sonolentas. A maioria delas, quase sempre, tentando imitar o vestuário dos machos: usando os horríveis "terninhos" ou costumes de executivas. Gente previsível, mundo monótono.
Coitada da minha irmã. Justo ela que não tem dinheiro para nada. Perguntou se não tinham
roubado do meu. Respondi que
não tenho fundo. "Será que roubaram também da poupança?",
acrescento. E fica por isso mesmo.
Desligamos. Espero no aeroporto,
intrigada com a notícia. Procuro-a no jornal que trago no colo. Mas
leio outra coisa: que um megainvestidor americano diz sobre a
economia/eleição brasileira "ou
Serra ou o caos". Como é? Que o
"mercado" quer impor José Serra
como presidente do Brasil, quer
enfiar goela abaixo do povo o
candidato do PSDB!
Que escândalo. Fecho o jornal.
Ora, já está mais do que na hora
de o Brasil ter um presidente que
não seja um desses almofadinhas
das elites de sempre: os playboys
de Alagoas, os coronéis da oligarquia nordestina, os intelectuais
apáticos de São Paulo. Como
aceitar calado que o presidente de
um país seja escolhido por interesses externos, fabricados por
economistas servis e covardes?
Volto a olhar a paisagem do aeroporto: os paletós sisudos, as calças folgadas, o uniforme que padroniza os homens. Ora, como
mudar interesses e poderes constituídos, arraigados no costume de
mandar, de fazer e acontecer? Todas as associações que a psicanálise faz entre poder e pênis, entre
sexo e comportamento, estavam
representadas naquele vai-e-vem
de ternos pelos saguões.
Dirijo-me à lanchonete do saguão principal. Ali, a multidão de
ternos está aglomerada diante de
um aparelho de TV: é um jogo de
futebol da Copa do Mundo, claro.
Ali eles se desnudam -coçam o
saco em público, nervosos como
moleques. Usam terno para isso,
vai ver. Para esconder os volumes,
para conferir um ar de cerimônia
àquela coisa exposta e ao poder
sórdido que manipulam: dos dólares americanos que investem ou
não onde querem, passando pela
roubalheira calculada do dinheiro das mulheres pobres, ao vagabundo jogo de bola que impõem ao mundo como coisa de gravíssima importância.
E-mail - mfelinto@uol.com.br
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