São Paulo, Segunda-feira, 11 de Outubro de 1999
Próximo Texto | Índice

VIOLÊNCIA POLICIAL
Microempresário acusa policiais civis de espancamento no interior de delegacia em Belém
Promotora arquiva denúncia de tortura

Reprodução
O microempresário Hildebrando Silva de freitas mostra hematomas provocados, segundo ele, por tortura que sofreu em delegacia


MÁRIO MAGALHÃES
enviado especial a Belém

Doze policiais armados não têm força para, se quiserem, espancar um só homem desarmado numa cela de delegacia.
Com esse argumento, a promotora Ociralva de Souza Farias Tabosa pediu no final de setembro o arquivamento do inquérito que apura tortura cometida em Belém (PA) por policiais civis contra o microempresário, compositor de sambas, estudante de direito e ex-sargento da Marinha Hildebrando Silva de Freitas, 36.
Como o arquivamento foi recusado pelo juiz Eronildes Souza Primo, da 18ª Vara Criminal, o caso espera decisão da Procuradoria Geral de Justiça do Pará para ser arquivado de vez ou virar processo judicial.
O inusitado parecer da promotora tem características para se transformar em peça histórica sobre as dificuldades de aplicação da Lei 9.455/97, que definiu há dois anos e meio o crime de tortura no Brasil.
Ela cita a "compleição física avantajada" de Freitas (1,91 m de altura) para afirmar que o seu "murro deve ter o mesmo efeito de uma marretada, uma dentada de Rotweiller [cão"".
Na opinião da promotora, "não dá para visualizar os policiais acusados batendo no mesmo [Hildebrando Freitas". Procurei ver os retratos dos investigadores de Polícia Civil e dos delegados acusados. Suas aparências nos trazem a imagem de recuperandos de malária ou tuberculose".
Já Freitas, em contraste com os "tuberculosos", é um "hercúleo", na descrição da representante do Ministério Público.
Fotografias tiradas aproximadamente 30 horas depois da prisão mostram o saco escrotal de Hildebrando completamente preto, as nádegas com grandes manchas roxas e hematomas escuros em braços, pernas e outras partes do corpo.
Apesar de ter as fotos, anexadas aos autos, a Folha decidiu não publicar várias delas por considerá-las excessivamente chocantes.
Ao comentar a imagem da bolsa escrotal enegrecida, a promotora Ociralva Tabosa escreveu, sem recorrer a laudo médico: "trata-se de cor natural, pelo tipo racial do fotografado".
Na verdade, se não for branco, Hildebrando Freitas é pardo.
O parecer da promotora foi apresentado após quase dois anos de apuração do fato.
Freitas foi preso às 22h30 de 15 de novembro de 1997 por uma equipe chefiada pelo delegado Clóvis Martins, da (DPA) Divisão de Polícia Administrativa.
O empresário era um dos sócios da casa de samba Cadência. O estabelecimento estava funcionando sem autorização legal, que dependia da DPA.
Segundo duas testemunhas, o policial Amilton da Silva Dias deu um tapa no rosto de Freitas, que foi levado de camburão para a delegacia do Telégrafo. A polícia alegou desacato para a detenção.
Amigo de Freitas, Edivaldo Nogueira de Souza seguiu o carro policial. Na delegacia, viu Freitas ser arrastado para uma cela. Disse ter ouvido gritos dos policiais e do amigo, tendo certeza de que se tratava de um espancamento.
Segundo o então sócio da casa de samba Cadência, a tortura começou, na delegacia, com o delegado Neyvando Costa da Silva dando-lhe um soco à altura das costelas esquerdas.
Carregado até um cubículo, Freitas contou ter sido seguro pelo agente Paulo Moutinho e esmurrado por outros policiais.
De acordo com Hildebrando Freitas, a tortura era comandada pelo delegado Martins, que no entanto não o teria tocado. O espancamento, segundo ele, teve a participação de cerca de 12 homens.
"Depois de ser arrastado até o lado de fora de uma cela, ouvi o investigador Amaral dizer aos presos "tem cu pra vocês" ", afirmou Freitas à Folha, tremendo e chorando. Em seguida, o delegado Martins lhe teria dito: "Tu vais virar menina".
"Desesperado, consegui que não fosse jogado na cela, mas fiquei no chão, sendo chutado sem parar. Deram um tiro, não sei em que direção."
Foi no chão, diz Freitas, que ele levou os pontapés que deixaram preto seu saco escrotal e roxas as nádegas. Foi liberado às 5h e, de manhã, procurou a ouvidora da Polícia do Pará, Rosa Marga Rothe, pedindo ajuda.
A Folha tentou falar com a promotora na quinta e na sexta-feiras. Não obteve resposta.
O advogado Renato Barbosa, representante de Hildebrando Freitas, defende que os policiais que seu cliente acusa de o terem espancado sejam julgados com base na Lei da Tortura -cuja pena, nesse caso, chega a 16 anos.
Dois anos depois do episódio, o homem que diz ter sido torturado está 21 quilos mais magro, devido a tumores nos rins. Há suspeitas de que os chutes nesses órgãos contribuíram para agravar o quadro clínico.
Hoje, Hildebrando Freitas já não se incomoda com a ironia de ser xará do deputado cassado Hildebrando Paschoal, suspeito de torturar vítimas antes de matá-las. "Acontece."



Próximo Texto: "Batemos no cara à toa", diz secretário de Defesa Social
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.