São Paulo, Segunda-feira, 11 de Outubro de 1999
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SAÚDE
O médico e político José Aristodemo Pinotti filia-se ao PV e critica o modelo de prevenção do serviço público
Pinotti vê "incompetência" na Saúde

AURELIANO BIANCARELLI
da Reportagem Local

O médico e professor José Aristodemo Pinotti não se classifica como um "político profissional", mas não consegue viver fora de partidos nem longe das polêmicas. Recusado pelo PMDB de Orestes Quércia, depois de perder a eleição como candidato a vice ao governo paulista pelo PSB, Pinotti afirma que chegou a ser convidado por Marta Suplicy. Seria o vice dela na chapa do PT pela prefeitura de São Paulo. "Marta disse que faríamos uma dupla imbatível, mas depois a conversa não andou."
Na semana passada, Pinotti filiou-se ao PV, não sem antes avisar o deputado e líder verde Fernando Gabeira -que o teria convidado- que ecologia não era bem sua praia.
"Disse que estava entrando para o PV não para defender a arara da Amazônia com mais ênfase com que defendo a mulher da periferia de São Paulo, e eles concordaram."
É com as mulheres, ou mais precisamente com a bandeira da saúde da mulher, que Pinotti construiu e vem sustentando sua carreira acadêmica e política. Professor titular de ginecologia e obstetrícia da Faculdade de Medicina da USP, ele já foi reitor da Unicamp secretário de Estado da Saúde do governo Quércia.
Hoje, classifica-se como de centro-esquerda e diz que seu apoio a Paulo Maluf, na última eleição para governador, visava criar uma "fissura na direita do país". Sonhava com a dupla Maluf-ACM fazendo frente a Covas-FHC.
O alvo preferido de seus ataques é a precária situação da saúde no país. "Falta dinheiro e falta competência na administração da saúde", ele critica. As incontáveis campanhas de catarata, próstata, câncer da mama, etc -que a cada lançamento levam o ministro da Saúde à televisão- "são tempo e dinheiro perdidos que poderiam ser investidos na estruturação do sistema de saúde".
Pinotti critica a lei dos planos de saúde -""prova maior de que o governo está privatizando a saúde" - e diz que a União e os Estados estão desrespeitando a Constituição ao diminuir os gastos nessa área.
Com a bagagem de nove anos à frente de um hospital de referência em saúde da mulher -o Pérola Byington-, Pinotti defende a integração da academia com a rede pública de saúde e a delegação de funções aos funcionários não-médicos. Ou seja, a formação de equipes onde o médico seria o líder e a grande maioria dos procedimentos e exames simples seriam realizados por auxiliares de enfermagem treinados. Na sua opinião, é a receita correta e possível de oferecer a grandes populações um programa de prevenção e diagnóstico precoce. Abaixo, trechos da entrevista que concedeu na semana passada.

Financiamento

Folha - O sr. acha que falta dinheiro, falta competência ou falta gerenciamento na saúde?
Pinotti
- As três coisas. Veja isso: Cuba gasta US$ 100 por habitante/ano em saúde e nós gastamos mais ou menos a mesma coisa. A mortalidade infantil em Cuba é de 8 por mil nascidos vivos. No Brasil, é de 50 a 60 por mil. A mortalidade materna em Cuba é de 7 por 100 mil. A nossa é de 220 por 100 mil.
Isso revela a nossa incompetência. Mesmo se compararmos com outros países como México, Chile e Uruguai, perdemos nos índices de mortalidade e morbidade.
Não estou dizendo que a incompetência gerencial é desse governo e desse ministro. É uma coisa crônica, mas que está continuando com esse governo.
Por outro lado, nós colocamos pouco dinheiro em saúde. A maneira correta de medir o que um governo coloca na saúde é o percentual do PIB. Não é o percentual da Previdência, porque o governo também manipula as verbas da Previdência. E nós estamos colocando em saúde cerca de 2% do PIB, o que é uma coisa ridícula. A Organização Mundial da Saúde recomenda que nenhum país deva colocar menos do que 5% de seu PIB. Cuba põe 7%, o Canadá 20%, os Estados Unidos 18%, a França 14%.

Folha - O presidente Fernando Henrique diz que o problema da saúde não é dinheiro...
Pinotti
- É dinheiro também. Eu concordo com o presidente quando diz que colocar mais dinheiro numa estrutura distorcida é jogar recursos fora, mas isso não invalida em nada o que eu estou dizendo, que se gasta pouco e se gasta mal. Ou seja, é preciso corrigir a estrutura e ao mesmo tempo colocar mais dinheiro.
Mas o governo está pondo cada vez menos dinheiro em saúde, embora diga que está pondo cada vez mais. É só comparar o dinheiro efetivamente gasto em saúde, em valores corrigidos, em 97 e 98. A conclusão é melancólica: em 97 o governo gastou R$ 19,1 bilhões. Em 98, ele arrecadou R$ 8,5 bilhões só com a CPMF, portanto, deveria gastar em saúde R$ 27,6 bilhões. Mas gastou R$ 17,4 bilhões. Ou seja, o governo enganou a todos os brasileiros e a todos os congressistas dizendo que esse dinheiro iria para a saúde. Não só não foi como caíram os recursos efetivamente gastos. Para mim, isso é estelionato.

Prevenção

Folha - E a prevenção, o governo está preocupado com ela?
Pinotti -
A prevenção pela prevenção acaba sendo uma coisa dialética e até falaciosa, porque confundir prevenção com essas campanhas que se fazem de apalpar a mama pela televisão ou a campanha totalmente desfocada do Papanicolau é jogar uma idéia boa fora. Também é absurdo pensar que a prevenção possa substituir o diagnóstico e o tratamento.
Os procedimentos têm que fazer parte da rotina. Campanhas não resolvem, pois seriam necessárias 50, 60.
Por isso eu digo que a prevenção é um discurso dialético bonito, que se transforma em campanhas políticas, mas não se transforma numa política de saúde. Só há um jeito de resolver isso, é modernizar o processo de oferta de ações de saúde, através de alguns procedimentos que são fundamentais.
O primeiro é integrar o atendimento da demanda sentida com as intervenções epidemiológicas definidas por critérios de risco. Ou seja, quando uma pessoa vai a um serviço de saúde com uma queixa, o médico aproveita e faz uma bateria de exames que podem identificar outros problemas assintomáticos. Aproveita e faz coletas de corrimento, Papanicolau, teste de HIV, checa a pressão arterial, o diabetes.

Folha - A rede de saúde não faz isso?
Pinotti -
Não faz. Esse esquema esteve montado durante dez anos no Hospital Pérola Byington. Além de necessário, é absolutamente viável. Os números recolhidos mostram a importância desses procedimentos. Por exemplo, analisamos os exames de uma amostra de 31 mil mulheres com mais de 45 anos de idade que procuraram o hospital por outras razões. Cerca de 21% delas tinham hipertensão, 3% obesidade mórbida, 16% diabetes, 33% apresentavam infecção no trato reprodutivo, 0,7% eram positivas para o HIV, 9% tinha mamas alteradas, etc. Veja a grande quantidade de patologias absolutamente assintomáticas que encontramos nessas mulheres.

O sistema

Folha - O que falta para essa prática ser implantada?
Pinotti -
É preciso modernizar o sistema pelo menos em duas coisas fundamentais. Uma delas é trazer o braço acadêmico para o serviço público, porque ele permite pesquisa operacional. O grande problema de saúde hoje no Brasil e no mundo em desenvolvimento é a diferença que existe entre tudo o que se sabe, os equipamentos que você tem, tudo o que você pode fazer e o pouquíssimo que você faz. Esse fosso só pode ser saltado com pesquisa operacional. Foi assim que agimos nos dez anos que estivemos no Pérola, porque eu ia fazendo e corrigindo, fazendo e corrigindo.
Para isso o braço acadêmico é fundamental, com ele você traz tecnologia de ponta, cabeça de ponta, são pessoas que, mesmo não sendo bem pagas, se sentem gratificadas em estar pesquisando, aprendendo e ensinando.

Folha - E a outra questão?
Pinotti -
Esta é mais polêmica, é a delegação de funções para trabalhadores não-médicos. Se você quiser universalizar as ações, ou seja, atender muita gente e muito bem, você tem que ter a capacidade de delegar funções para pessoas preparadas para isso. Foi o que fizemos no Pérola. Durante um ano nós treinávamos auxiliares de enfermagem para fazer ações de saúde simples, colher Papanicolau, tirar a pressão, medir altura, tomar pulso, tomar temperatura, ensinar a mulher como apalpar a mama e colher corrimento da vagina, medir ph vaginal... Quando o médico entrava na sala, a auxiliar de enfermagem já tinha conversado com a paciente e feito todos esses procedimentos e exames. O médico não foi feito para repetir ações iguais em várias mulheres todos os dias. Ele foi feito para ser o líder da equipe de saúde. Chega na sala, olha o resultado dos exames, faz o toque e repete os procedimentos que achar necessário.
Ou seja, a auxiliar de enfermagem ficou 25 minutos com a paciente e o médico ficou 5. Nos últimos dois anos, atendíamos em média 3.000 mulheres por dia.

Folha - O senhor idealizou o Instituto da Mulher, mas o prédio agora será repartido com outros serviços. O senhor defende um atendimento centralizado para a mulher?
Pinotti -
Sem dúvida a atenção primária tem que ser feita em centro de saúde. Mas é errado achar que serviços de referência como Pérola Byington e Hospital das Clínicas não podem e não devem fazer atenção primária. O serviço de referência tem a obrigação de fazer atenção primária para criar modelo de atenção primária. Tem que fazer isso como um campo de pesquisa operacional. Então, nós não podemos ser simplistas e dizer: o hospital tem que ser só para os casos complexos e a atenção primária se faz na periferia. Não se faz. A mulher vai ao Pérola Byington e mandam ela de volta a um posto da periferia, mas lá ela vai receber um tratamento sintomático, sem nenhuma preocupação com a prevenção. Vão colher o Papanicolau e pronto, como se isso fosse bastasse em prevenção. Estamos voltando dez anos atrás exatamente por querer organizar o sistema dessa forma sistêmica, dicotômica e tola.
Para se ter uma idéia, no Brasil ainda morrem 7.000 mulheres de câncer de colo uterino. É um absurdo porque ninguém poderia morrer desse tipo de câncer, que pode ser prevenido ensinando as mulheres a praticar coito protegido. Você pode prevenir tratando dos corrimentos das feridas e do vírus, que é o que a gente fazia nos ambulatórios. E se você não conseguir prevenir, você pode detectar precocemente, porque quando a lesão neoplásica começa, ela fica restrita ao epitélio cerca de oito a dez anos e aí, com o Papanicolau, você diagnostica, trata ambulatorialmente e cura. Quer dizer, com tudo isso morrer 7.000 mulheres por ano de câncer de colo é um assassinato coletivo.

Como o senhor avalia a atuação do ministro José Serra?
Pinotti -
Olha, eu acho o Serra uma das pessoas mais inteligentes, mais ambiciosas, no bom sentido, mais capazes que eu conheço. Mas é muito difícil para uma pessoa que nunca esteve imersa na questão da saúde tomar as 20 decisões diárias que um ministro precisa tomar em relação à saúde. O erro na campanha do Papanicolau, por exemplo, o Serra não tem nenhuma obrigação de conhecer a história natural do câncer de colo. A política de fazer campanhas e mais campanhas é outro erro, mas não creio que o Serra tivesse intenção de errar. Essa sequência de campanhas leva a uma perda de tempo e de dinheiro e não se faz aquilo que é fundamental, que é estruturar o sistema de saúde adequadamente e colocar essas coisas na rotina. Não acho que seja errado tirar proveito político da saúde, mas o proveito político da saúde deve ser tirado em função da diminuição dos números de mortalidade, morbidade e da estruturação do sistema de saúde e não de campanhas.

Privatização

Folha - O senhor vê uma tendência privatizante na saúde?
Pinotti -
É muito clara. A primeira tentativa do governo foi a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) da Saúde quando tentou alterar o texto da Constituição que diz que a saúde é um dever do Estado e um direito de todos. Eu fui o relator dessa comissão e o governo foi derrotado.
Mas a derrota não adiantou nada, porque eles continuaram com o mesmo esforço ao arrepio da Constituição. É constitucionalmente proibido diminuir recursos para a saúde. Eles diminuíram. Eles praticaram um estelionato com a CPMF. E a intenção da privatização ficou absolutamente manifesta na regulamentação dos planos de saúde, que foi um horror, pois o relator apresentou como sendo dele o relatório da Abramge, Associação Brasileira das Empresas de Medicina de Grupo. O governo vem tirando das suas costas a responsabilidade sobre saúde, diminuindo o orçamento e deixando os cidadãos incautos nas mãos desses lobos que são os donos dos planos e seguros de saúde.

Folha - O senhor acha que existe uma intenção deliberada do Estado de se livrar dos encargos relativos à saúde?
Pinotti -
É uma determinação do Fundo Monetário Internacional. O FMI prestigia os países em desenvolvimento que fazem maldades na área da saúde e na área de educação. Eu estou sendo um pouco irônico, mas é absolutamente verdade. Existem coisas que podem e devem ser privatizadas, mas há outras que não podem. Num país onde 80% não tem como pagar um plano de saúde que lhe dê assistência global, a saúde tem que ser pública e tem que ser boa e tem que ser humana e tem que ser universal. O Fernando está pecando por cumprir as tarefas do FMI mais à risca do que eles pediam. Para se ter uma idéia, o Brasil recebe R$ 130 bilhões de impostos e paga de serviço da dívida R$ 70 bilhões. Sobra muito pouco para a saúde e a educação. Para melhorar as questões sociais, o país deveria limitar o pagamento da dívida a 20% dos impostos. Mais do que isso é pagar a dívida com sangue.

A política

Folha - Como o senhor foi para no PV?
Pinotti -
Eu saí do PMDB em 97 porque não consegui fazer com que o partido fizesse oposição ao governo. Fui para o PSB para fazer oposição ao neoliberalismo e sai do partido porque ele resolver apoiar o Covas em São Paulo. O partido tinha um projeto de poder e eu acabei aceitando sair candidato a vice-governador na chapa com o Francisco Rossi. Foi um erro político de minha parte, porque eu tinha uma eleição de deputado federal garantida. Depois disso tentei voltar ao PMDB, mas o Quércia vetou o meu nome. Aí surgiu o convite do Gabeira para que eu me filiasse ao PV.

Folha - O senhor pensava se candidatar a prefeito de Campinas...
Pinotti -
O prazo para a transferência de título já acabou. Agora estou pensando o que fazer, talvez fique fora do processo. Mas tem gente no PV que gostaria que eu saísse candidato a prefeito em São Paulo.


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