|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
SAÚDE
O médico e político José Aristodemo Pinotti filia-se ao PV e critica o modelo de prevenção do serviço público
Pinotti vê "incompetência" na Saúde
AURELIANO BIANCARELLI
da Reportagem Local
O médico e professor José Aristodemo Pinotti não se classifica
como um "político profissional",
mas não consegue viver fora de
partidos nem longe das polêmicas. Recusado pelo PMDB de
Orestes Quércia, depois de perder
a eleição como candidato a vice ao
governo paulista pelo PSB, Pinotti
afirma que chegou a ser convidado por Marta Suplicy. Seria o vice
dela na chapa do PT pela prefeitura de São Paulo. "Marta disse que
faríamos uma dupla imbatível,
mas depois a conversa não andou."
Na semana passada, Pinotti filiou-se ao PV, não sem antes avisar o deputado e líder verde Fernando Gabeira -que o teria convidado- que ecologia não era
bem sua praia.
"Disse que estava entrando para
o PV não para defender a arara da
Amazônia com mais ênfase com
que defendo a mulher da periferia
de São Paulo, e eles concordaram."
É com as mulheres, ou mais precisamente com a bandeira da saúde da mulher, que Pinotti construiu e vem sustentando sua carreira acadêmica e política. Professor titular de ginecologia e obstetrícia da Faculdade de Medicina
da USP, ele já foi reitor da Unicamp secretário de Estado da Saúde do governo Quércia.
Hoje, classifica-se como de centro-esquerda e diz que seu apoio a
Paulo Maluf, na última eleição para governador, visava criar uma
"fissura na direita do país". Sonhava com a dupla Maluf-ACM
fazendo frente a Covas-FHC.
O alvo preferido de seus ataques
é a precária situação da saúde no
país. "Falta dinheiro e falta competência na administração da
saúde", ele critica. As incontáveis
campanhas de catarata, próstata,
câncer da mama, etc -que a cada
lançamento levam o ministro da
Saúde à televisão- "são tempo e
dinheiro perdidos que poderiam
ser investidos na estruturação do
sistema de saúde".
Pinotti critica a lei dos planos de
saúde -""prova maior de que o
governo está privatizando a saúde" - e diz que a União e os Estados estão desrespeitando a Constituição ao diminuir os gastos
nessa área.
Com a bagagem de nove anos à
frente de um hospital de referência em saúde da mulher -o Pérola Byington-, Pinotti defende a
integração da academia com a rede pública de saúde e a delegação
de funções aos funcionários não-médicos. Ou seja, a formação de
equipes onde o médico seria o líder e a grande maioria dos procedimentos e exames simples seriam realizados por auxiliares de
enfermagem treinados. Na sua
opinião, é a receita correta e possível de oferecer a grandes populações um programa de prevenção
e diagnóstico precoce. Abaixo,
trechos da entrevista que concedeu na semana passada.
Financiamento
Folha - O sr. acha que falta dinheiro, falta competência ou
falta gerenciamento na saúde?
Pinotti - As três coisas. Veja isso: Cuba gasta US$ 100 por habitante/ano em saúde e nós gastamos mais ou menos a mesma coisa. A mortalidade infantil em Cuba é de 8 por mil nascidos vivos.
No Brasil, é de 50 a 60 por mil. A
mortalidade materna em Cuba é
de 7 por 100 mil. A nossa é de 220
por 100 mil.
Isso revela a nossa incompetência. Mesmo se compararmos com
outros países como México, Chile
e Uruguai, perdemos nos índices
de mortalidade e morbidade.
Não estou dizendo que a incompetência gerencial é desse governo e desse ministro. É uma coisa
crônica, mas que está continuando com esse governo.
Por outro lado, nós colocamos
pouco dinheiro em saúde. A maneira correta de medir o que um
governo coloca na saúde é o percentual do PIB. Não é o percentual da Previdência, porque o governo também manipula as verbas da Previdência. E nós estamos
colocando em saúde cerca de 2%
do PIB, o que é uma coisa ridícula.
A Organização Mundial da Saúde
recomenda que nenhum país deva colocar menos do que 5% de
seu PIB. Cuba põe 7%, o Canadá
20%, os Estados Unidos 18%, a
França 14%.
Folha - O presidente Fernando
Henrique diz que o problema da
saúde não é dinheiro...
Pinotti - É dinheiro também. Eu
concordo com o presidente quando diz que colocar mais dinheiro
numa estrutura distorcida é jogar
recursos fora, mas isso não invalida em nada o que eu estou dizendo, que se gasta pouco e se gasta
mal. Ou seja, é preciso corrigir a
estrutura e ao mesmo tempo colocar mais dinheiro.
Mas o governo está pondo cada
vez menos dinheiro em saúde,
embora diga que está pondo cada
vez mais. É só comparar o dinheiro efetivamente gasto em saúde,
em valores corrigidos, em 97 e 98.
A conclusão é melancólica: em 97
o governo gastou R$ 19,1 bilhões.
Em 98, ele arrecadou R$ 8,5 bilhões só com a CPMF, portanto,
deveria gastar em saúde R$ 27,6
bilhões. Mas gastou R$ 17,4 bilhões. Ou seja, o governo enganou
a todos os brasileiros e a todos os
congressistas dizendo que esse dinheiro iria para a saúde. Não só
não foi como caíram os recursos
efetivamente gastos. Para mim, isso é estelionato.
Prevenção
Folha - E a prevenção, o governo está preocupado com ela?
Pinotti - A prevenção pela prevenção acaba sendo uma coisa
dialética e até falaciosa, porque
confundir prevenção com essas
campanhas que se fazem de apalpar a mama pela televisão ou a
campanha totalmente desfocada
do Papanicolau é jogar uma idéia
boa fora. Também é absurdo pensar que a prevenção possa substituir o diagnóstico e o tratamento.
Os procedimentos têm que fazer parte da rotina. Campanhas
não resolvem, pois seriam necessárias 50, 60.
Por isso eu digo que a prevenção é um discurso dialético bonito, que se transforma em campanhas políticas, mas não se transforma numa política de saúde. Só
há um jeito de resolver isso, é modernizar o processo de oferta de
ações de saúde, através de alguns
procedimentos que são fundamentais.
O primeiro é integrar o atendimento da demanda sentida com
as intervenções epidemiológicas
definidas por critérios de risco.
Ou seja, quando uma pessoa vai a
um serviço de saúde com uma
queixa, o médico aproveita e faz
uma bateria de exames que podem identificar outros problemas
assintomáticos. Aproveita e faz
coletas de corrimento, Papanicolau, teste de HIV, checa a pressão
arterial, o diabetes.
Folha - A rede de saúde não
faz isso?
Pinotti - Não faz. Esse esquema
esteve montado durante dez anos
no Hospital Pérola Byington.
Além de necessário, é absolutamente viável. Os números recolhidos mostram a importância
desses procedimentos. Por exemplo, analisamos os exames de
uma amostra de 31 mil mulheres
com mais de 45 anos de idade que
procuraram o hospital por outras
razões. Cerca de 21% delas tinham hipertensão, 3% obesidade
mórbida, 16% diabetes, 33% apresentavam infecção no trato reprodutivo, 0,7% eram positivas para
o HIV, 9% tinha mamas alteradas, etc. Veja a grande quantidade
de patologias absolutamente assintomáticas que encontramos
nessas mulheres.
O sistema
Folha - O que falta para essa
prática ser implantada?
Pinotti - É preciso modernizar o
sistema pelo menos em duas coisas fundamentais. Uma delas é
trazer o braço acadêmico para o
serviço público, porque ele permite pesquisa operacional. O
grande problema de saúde hoje
no Brasil e no mundo em desenvolvimento é a diferença que existe entre tudo o que se sabe, os
equipamentos que você tem, tudo
o que você pode fazer e o pouquíssimo que você faz. Esse fosso
só pode ser saltado com pesquisa
operacional. Foi assim que agimos nos dez anos que estivemos
no Pérola, porque eu ia fazendo e
corrigindo, fazendo e corrigindo.
Para isso o braço acadêmico é
fundamental, com ele você traz
tecnologia de ponta, cabeça de
ponta, são pessoas que, mesmo
não sendo bem pagas, se sentem
gratificadas em estar pesquisando, aprendendo e ensinando.
Folha - E a outra questão?
Pinotti - Esta é mais polêmica, é
a delegação de funções para trabalhadores não-médicos. Se você
quiser universalizar as ações, ou
seja, atender muita gente e muito
bem, você tem que ter a capacidade de delegar funções para pessoas preparadas para isso. Foi o
que fizemos no Pérola. Durante
um ano nós treinávamos auxiliares de enfermagem para fazer
ações de saúde simples, colher Papanicolau, tirar a pressão, medir
altura, tomar pulso, tomar temperatura, ensinar a mulher como
apalpar a mama e colher corrimento da vagina, medir ph vaginal... Quando o médico entrava
na sala, a auxiliar de enfermagem
já tinha conversado com a paciente e feito todos esses procedimentos e exames. O médico não foi
feito para repetir ações iguais em
várias mulheres todos os dias. Ele
foi feito para ser o líder da equipe
de saúde. Chega na sala, olha o resultado dos exames, faz o toque e
repete os procedimentos que
achar necessário.
Ou seja, a auxiliar de enfermagem ficou 25 minutos com a paciente e o médico ficou 5. Nos últimos dois anos, atendíamos em
média 3.000 mulheres por dia.
Folha - O senhor idealizou o
Instituto da Mulher, mas o prédio agora será repartido com
outros serviços. O senhor defende um atendimento centralizado para a mulher?
Pinotti - Sem dúvida a atenção
primária tem que ser feita em centro de saúde. Mas é errado achar
que serviços de referência como
Pérola Byington e Hospital das
Clínicas não podem e não devem
fazer atenção primária. O serviço
de referência tem a obrigação de
fazer atenção primária para criar
modelo de atenção primária. Tem
que fazer isso como um campo de
pesquisa operacional. Então, nós
não podemos ser simplistas e dizer: o hospital tem que ser só para
os casos complexos e a atenção
primária se faz na periferia. Não
se faz. A mulher vai ao Pérola
Byington e mandam ela de volta a
um posto da periferia, mas lá ela
vai receber um tratamento sintomático, sem nenhuma preocupação com a prevenção. Vão colher
o Papanicolau e pronto, como se
isso fosse bastasse em prevenção.
Estamos voltando dez anos atrás
exatamente por querer organizar
o sistema dessa forma sistêmica,
dicotômica e tola.
Para se ter uma idéia, no Brasil
ainda morrem 7.000 mulheres de
câncer de colo uterino. É um absurdo porque ninguém poderia
morrer desse tipo de câncer, que
pode ser prevenido ensinando as
mulheres a praticar coito protegido. Você pode prevenir tratando
dos corrimentos das feridas e do
vírus, que é o que a gente fazia nos
ambulatórios. E se você não conseguir prevenir, você pode detectar precocemente, porque quando a lesão neoplásica começa, ela
fica restrita ao epitélio cerca de oito a dez anos e aí, com o Papanicolau, você diagnostica, trata ambulatorialmente e cura. Quer dizer, com tudo isso morrer 7.000
mulheres por ano de câncer de
colo é um assassinato coletivo.
Como o senhor avalia a atuação do ministro José Serra?
Pinotti - Olha, eu acho o Serra
uma das pessoas mais inteligentes, mais ambiciosas, no bom sentido, mais capazes que eu conheço. Mas é muito difícil para uma
pessoa que nunca esteve imersa
na questão da saúde tomar as 20
decisões diárias que um ministro
precisa tomar em relação à saúde.
O erro na campanha do Papanicolau, por exemplo, o Serra não
tem nenhuma obrigação de conhecer a história natural do câncer de colo. A política de fazer
campanhas e mais campanhas é
outro erro, mas não creio que o
Serra tivesse intenção de errar. Essa sequência de campanhas leva a
uma perda de tempo e de dinheiro e não se faz aquilo que é fundamental, que é estruturar o sistema
de saúde adequadamente e colocar essas coisas na rotina. Não
acho que seja errado tirar proveito político da saúde, mas o proveito político da saúde deve ser tirado em função da diminuição dos
números de mortalidade, morbidade e da estruturação do sistema
de saúde e não de campanhas.
Privatização
Folha - O senhor vê uma tendência privatizante na saúde?
Pinotti - É muito clara. A primeira tentativa do governo foi a
PEC (Proposta de Emenda Constitucional) da Saúde quando tentou alterar o texto da Constituição
que diz que a saúde é um dever do
Estado e um direito de todos. Eu
fui o relator dessa comissão e o
governo foi derrotado.
Mas a derrota não adiantou nada, porque eles continuaram com
o mesmo esforço ao arrepio da
Constituição. É constitucionalmente proibido diminuir recursos para a saúde. Eles diminuíram. Eles praticaram um estelionato com a CPMF. E a intenção da
privatização ficou absolutamente
manifesta na regulamentação dos
planos de saúde, que foi um horror, pois o relator apresentou como sendo dele o relatório da
Abramge, Associação Brasileira
das Empresas de Medicina de
Grupo. O governo vem tirando
das suas costas a responsabilidade
sobre saúde, diminuindo o orçamento e deixando os cidadãos incautos nas mãos desses lobos que
são os donos dos planos e seguros
de saúde.
Folha - O senhor acha que
existe uma intenção deliberada
do Estado de se livrar dos encargos relativos à saúde?
Pinotti - É uma determinação
do Fundo Monetário Internacional. O FMI prestigia os países em
desenvolvimento que fazem maldades na área da saúde e na área
de educação. Eu estou sendo um
pouco irônico, mas é absolutamente verdade. Existem coisas
que podem e devem ser privatizadas, mas há outras que não podem. Num país onde 80% não
tem como pagar um plano de saúde que lhe dê assistência global, a
saúde tem que ser pública e tem
que ser boa e tem que ser humana
e tem que ser universal. O Fernando está pecando por cumprir as
tarefas do FMI mais à risca do que
eles pediam. Para se ter uma idéia,
o Brasil recebe R$ 130 bilhões de
impostos e paga de serviço da dívida R$ 70 bilhões. Sobra muito
pouco para a saúde e a educação.
Para melhorar as questões sociais,
o país deveria limitar o pagamento da dívida a 20% dos impostos.
Mais do que isso é pagar a dívida
com sangue.
A política
Folha - Como o senhor foi para
no PV?
Pinotti - Eu saí do PMDB em 97
porque não consegui fazer com
que o partido fizesse oposição ao
governo. Fui para o PSB para fazer oposição ao neoliberalismo e
sai do partido porque ele resolver
apoiar o Covas em São Paulo. O
partido tinha um projeto de poder e eu acabei aceitando sair candidato a vice-governador na chapa com o Francisco Rossi. Foi um
erro político de minha parte, porque eu tinha uma eleição de deputado federal garantida. Depois
disso tentei voltar ao PMDB, mas
o Quércia vetou o meu nome. Aí
surgiu o convite do Gabeira para
que eu me filiasse ao PV.
Folha - O senhor pensava se
candidatar a prefeito de Campinas...
Pinotti - O prazo para a transferência de título já acabou. Agora
estou pensando o que fazer, talvez
fique fora do processo. Mas tem
gente no PV que gostaria que eu
saísse candidato a prefeito em São
Paulo.
Texto Anterior: Ator morre aos 76 anos nos EUA Próximo Texto: Consumo: Recorrer de multas por conta própria é mais vantajoso Índice
|