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MOACYR SCLIAR
Deus, censurado
Acharam que certas palavras poderiam criar problemas. Em certos filmes, o nome de [BIP] é substituído por um [BIP]
"A Rainha", de Stephen Frears, tem nada
menos do que seis indicações ao Oscar
-incluindo as categorias de melhor filme, diretor e atriz.
Mas a notoriedade da produção britânica nos Estados Unidos não o salvou de
uma trapalhada que resultou em uma
"censura culposa" (sem intenção). Na
versão que é exibida durante os vôos de
algumas companhias aéreas, o longa que
traz Helen Mirren no papel de Elizabeth
2ª não tem a palavra "Deus" uma única
vez sequer.
O termo foi cortado durante a edição
realizada por um funcionário da distribuidora que seleciona os filmes para a
Delta Airlines, a Air New Zealand e outras companhias. De acordo com a agência de notícias Associated Press, tudo
não passou de um mal-entendido.
O funcionário da distribuidora tinha ordens de excluir do longa tudo o que pudesse ser considerado blasfêmia. Em vez
de cortar as declarações contra Deus, ele
cortou a palavra "Deus". Quem assiste à
produção escuta um longo BIP no lugar
de "Deus", mesmo em expressões inofensivas como "Deus te abençoe".
Folha Online
NO PRINCÍPIO [BIP] criou o céu
e a Terra. A Terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o oceano e um vento impetuoso soprava sobre as águas. [BIP]
disse: "Faça-se a luz!" E a luz se fez.
[BIP] viu que a luz era boa. [BIP] separou a luz das trevas. E à luz [BIP]
chamou dia, e às trevas [BIP] chamou noite. Fez-se tarde e veio a manhã: o primeiro dia.
[BIP] disse: "Faça-se um firmamento, entre as águas, separando
umas das outras". E [BIP] fez o firmamento. [BIP] separou as águas
que estavam por baixo do firmamento das águas que estavam por cima do firmamento. Ao firmamento
[BIP] chamou céu. Fez-se tarde e
veio a manhã: o segundo dia.
[BIP] disse: "Juntem-se as águas
que estão aqui debaixo do céu e apareça o solo firme". E assim se fez. Ao
solo [BIP] chamou "terra"; ao ajuntamento das águas, [BIP] chamou
"mar". E [BIP] viu que era bom.
E assim [BIP] criou plantas, e estrelas, e pássaros, e peixes, e animais
terrestres. [BIP] viu que era bom.
Mas aí [BIP] resolveu criar o homem à sua imagem e semelhança.
[BIP] fez o homem e a mulher. Eles
cresceram e se multiplicaram e encheram a Terra de descendentes. E
estes descendentes, sob o olhar benévolo de [BIP], se espalharam pelos cinco continentes, trabalharam,
criaram máquinas e inventaram coisas. Uma destas coisas era o cinema.
Os humanos gostavam muito dos
filmes, mas alguns humanos não
gostavam do que era dito nos filmes.
Acharam que certas palavras poderiam criar problemas. Uma destas
palavras era o nome de [BIP]. Os religiosos talvez vissem no uso desse
nome um desrespeito, os não-religiosos quem sabe se ofenderiam.
Então alguém determinou que, em
certos filmes, o nome de [BIP] fosse
substituído por um [BIP].
Muitos estranharam, e a notícia
correu mundo. Mas [BIP] não estranhou. Em primeiro lugar porque
[BIP] não anda de avião, nem mesmo na primeira classe: [BIP] não
precisa voar, está em qualquer lugar
a qualquer hora, sem temer atrasos
em aeroportos. Segundo porque
[BIP] não assiste a filmes. Melhor
dizendo: em matéria de invenção e
de criação, [BIP] já viu tudo o que
pode ser visto. [BIP] é o único que já
sabe o resultado do Oscar.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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