São Paulo, segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

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MOACYR SCLIAR

Deus, censurado

Acharam que certas palavras poderiam criar problemas. Em certos filmes, o nome de [BIP] é substituído por um [BIP]

"A Rainha", de Stephen Frears, tem nada menos do que seis indicações ao Oscar -incluindo as categorias de melhor filme, diretor e atriz.
Mas a notoriedade da produção britânica nos Estados Unidos não o salvou de uma trapalhada que resultou em uma "censura culposa" (sem intenção). Na versão que é exibida durante os vôos de algumas companhias aéreas, o longa que traz Helen Mirren no papel de Elizabeth 2ª não tem a palavra "Deus" uma única vez sequer.
O termo foi cortado durante a edição realizada por um funcionário da distribuidora que seleciona os filmes para a Delta Airlines, a Air New Zealand e outras companhias. De acordo com a agência de notícias Associated Press, tudo não passou de um mal-entendido.
O funcionário da distribuidora tinha ordens de excluir do longa tudo o que pudesse ser considerado blasfêmia. Em vez de cortar as declarações contra Deus, ele cortou a palavra "Deus". Quem assiste à produção escuta um longo BIP no lugar de "Deus", mesmo em expressões inofensivas como "Deus te abençoe".
Folha Online

NO PRINCÍPIO [BIP] criou o céu e a Terra. A Terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o oceano e um vento impetuoso soprava sobre as águas. [BIP] disse: "Faça-se a luz!" E a luz se fez. [BIP] viu que a luz era boa. [BIP] separou a luz das trevas. E à luz [BIP] chamou dia, e às trevas [BIP] chamou noite. Fez-se tarde e veio a manhã: o primeiro dia.
[BIP] disse: "Faça-se um firmamento, entre as águas, separando umas das outras". E [BIP] fez o firmamento. [BIP] separou as águas que estavam por baixo do firmamento das águas que estavam por cima do firmamento. Ao firmamento [BIP] chamou céu. Fez-se tarde e veio a manhã: o segundo dia.
[BIP] disse: "Juntem-se as águas que estão aqui debaixo do céu e apareça o solo firme". E assim se fez. Ao solo [BIP] chamou "terra"; ao ajuntamento das águas, [BIP] chamou "mar". E [BIP] viu que era bom.
E assim [BIP] criou plantas, e estrelas, e pássaros, e peixes, e animais terrestres. [BIP] viu que era bom.
Mas aí [BIP] resolveu criar o homem à sua imagem e semelhança. [BIP] fez o homem e a mulher. Eles cresceram e se multiplicaram e encheram a Terra de descendentes. E estes descendentes, sob o olhar benévolo de [BIP], se espalharam pelos cinco continentes, trabalharam, criaram máquinas e inventaram coisas. Uma destas coisas era o cinema.
Os humanos gostavam muito dos filmes, mas alguns humanos não gostavam do que era dito nos filmes.
Acharam que certas palavras poderiam criar problemas. Uma destas palavras era o nome de [BIP]. Os religiosos talvez vissem no uso desse nome um desrespeito, os não-religiosos quem sabe se ofenderiam. Então alguém determinou que, em certos filmes, o nome de [BIP] fosse substituído por um [BIP].
Muitos estranharam, e a notícia correu mundo. Mas [BIP] não estranhou. Em primeiro lugar porque [BIP] não anda de avião, nem mesmo na primeira classe: [BIP] não precisa voar, está em qualquer lugar a qualquer hora, sem temer atrasos em aeroportos. Segundo porque [BIP] não assiste a filmes. Melhor dizendo: em matéria de invenção e de criação, [BIP] já viu tudo o que pode ser visto. [BIP] é o único que já sabe o resultado do Oscar.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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