São Paulo, segunda-feira, 12 de abril de 2010

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MOACYR SCLIAR

Passageiro especial


Queremos passagens grátis pelo resto de nossas vidas. Incluindo quando tivermos passado desta para a melhor


 


A polícia britânica disse que o homem que a viúva e a enteada tentaram embarcar em um voo para Alemanha havia falecido por causas naturais por volta de 12 horas antes do horário de embarque. O homem, de 91 anos, usando óculos escuros, foi transportado em uma cadeira de rodas no aeroporto de Liverpool. Os funcionários do check-in acharam a situação suspeita e impediram o embarque. As mulheres foram detidas e liberadas sob fiança. A enteada negou que as duas mulheres tenham tentado embarcar com o idoso morto.
Ele sofria do mal de Alzheimer, tinha sido internado devido a uma pneumonia. Mantinha os olhos fechados, mas, ainda segundo a enteada, isso era porque estava dormindo. Quando questionada a razão de o homem estar com óculos escuros no momento da tentativa de embarque, explicou que o padrasto tinha um problema ocular. Já um funcionário do aeroporto, que ajudou as duas mulheres a retirar o idoso do táxi, garantiu que o corpo estava "gelado".
"Eu soube imediatamente que o homem estava morto, mas elas me garantiram que estava apenas dormindo". Folha Online

"SENHOR JUIZ, comparecemos perante este egrégio tribunal para denunciar a injustiça, a ignomínia, melhor dizendo, da qual fomos vítimas. Como é de seu conhecimento, fomos impedidas de embarcar um senhor idoso num voo de Liverpool para a Alemanha, terra natal do passageiro.
Alegou o pessoal do aeroporto que este senhor estava morto. O que, como o senhor bem pode imaginar, é um absurdo. Mas vamos admitir, apenas para efeito de raciocínio, que esta afirmativa seja verdadeira e que tenhamos nos enganado; afinal, é tênue a linha que separa a vida da morte, sobretudo numa idade avançada.
Vamos admitir que tenhamos tentado embarcar um passageiro falecido. A pergunta que se impõe é: e daí? Qual o problema? A companhia aérea dirá que um morto deve ser embarcado em caixão, o que custa muito mais caro. Mas nós indagamos: qual, afinal, a diferença.
Veja, senhor juiz:
1) Viva ou morta, a pessoa ocupa exatamente o mesmo lugar, no caso um assento em classe econômica;
2) Para as outras pessoas que estiverem a bordo, esse passageiro não representará problema algum. Se estiver ao lado da janela não pedirá que os outros levantem para ir ao banheiro. Não puxará conversa com quem não quer falar. Diferente de muitos que dormem a bordo, não roncará;
3) Para a companhia esse passageiro é igualmente exemplar. Uma vez que lhe tenham colocado o cinto de segurança, não mais o removerá. Não falará ao celular, não ligará qualquer dispositivo eletrônico.
Não consumirá alimento de qualquer espécie, nem bebidas, o que sempre representará uma economia. Nada perturbará os comissários com perguntas inúteis. Se for mal atendido a bordo, não se queixará, não pedirá qualquer indenização. É verdade que, no desembarque, não se dirigirá diretamente à saída, mas poderá facilmente ser transportado em cadeira de rodas ou similar.
Em virtude desses argumentos, senhor juiz, pleiteamos uma indenização. Queremos passagens aéreas gratuitas pelo resto de nossas vidas. Incluindo aquele momento em que tivermos passado desta para a melhor. Que melhor só será se a companhia área nos tratar com o respeito que merecemos."

MOACYR SCLIAR escreve nesta página, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.

moacyr.scliar@uol.com.br


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