São Paulo, domingo, 12 de maio de 2002

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DANUZA LEÃO

Dias difíceis

Ela sempre viveu sem planos e sem nenhum objetivo definido.
Nunca desejou ser especialmente nada: nem médica, nem modelo, nem economista, nem atriz famosa -ou ser rica e ter uma casa com piscina. Estava sempre tão preocupada em viver o momento presente, sem tempo para parar e pensar, que foi optando à medida que as coisas foram acontecendo.
E elas nunca pararam de acontecer. Fez algumas escolhas certas, muitas erradas, mas de uma coisa não pode se queixar: de ter tido uma vida monótona. Hoje se pergunta: será que um destino palpitante é só para alguns poucos? Ou será que a distância entre ter uma vida de tédio ou uma cheia de aventuras não depende apenas das escolhas que se faz?
Lembra da história de uma tia-avó que morava numa cidadezinha que só tinha uma rua, no interior do Espírito Santo. Casada, com dois filhos e cercada pela família, ela -lá pelos anos 20, quando as mulheres mal tinham permissão para chegar à janela- começou a trocar olhares com um tenente que aparecia às vezes na cidade. O namoro prosperou -como, ninguém sabe-, e um dia resolveram fugir. Combinaram de se encontrar num lugar longe da cidade, no meio do mato, perto de uma determinada árvore; saíram a cavalo, em horas diferentes, para ninguém perceber. O fim foi triste: os irmãos desconfiaram, foram atrás e mataram o tenente. Mas essa história prova que em qualquer lugar do mundo, mesmo numa ilha deserta, é possível inventar e reinventar a vida a cada dia -é só querer. O problema maior é que, antes de querer, é preciso saber o que se quer, e aí é que são elas. Feliz de quem traça um objetivo na vida -basta um- e corre atrás dele. Se vai conseguir ou não, é o de menos.
Existem pessoas com essa capacidade. Capacidade de gostar sempre do mesmo homem, de saber exatamente a que horas e com que cara ele vai chegar em casa -e não se irritar com isso-, capacidade de não ficar de mau humor porque os dias são sempre iguais, o verão chega sempre no mesmo mês, o sol nasce sempre na mesma hora, o tempo passa; saber que é preciso ter paciência para esperar que o cabelo, cortado curto num momento de loucura, cresça de novo, não passar a vida querendo mudar a cara, a casa, o casamento, o mundo. Ser sensata, digamos assim, e sobretudo saber se conformar. Se conformar: isso é o mais difícil.
Ela, que sempre preferiu as incertezas à certeza, a insegurança à segurança, pagou o preço. Se arrepende? Às vezes.
Mas só às vezes; é quando, num domingo, fica sozinha e o telefone não toca. Sabe que a culpa é toda dela, que, com sua insuportável individualidade, sempre se recusou a pertencer a qualquer grupo. Agora não tem nem o direito de reclamar.
Mas e se tivesse feito como todo mundo? Se tivesse conservado suas amigas do tempo de colégio e, em vez de passar a vida procurando -e muitas vezes inventando- o amor, tivesse tido menos pressa e sido mais tolerante? Talvez tivesse uma companhia e não estaria envelhecendo só. Só que aos 25 ninguém acredita que algum dia vai ter 60 -e ela, menos que qualquer um; agora é tarde e Inês está mais do que morta e enterrada.
Quando se sente só, porque nunca pensou no futuro, pensa que podia ter sido pior. Imagine se tivesse vivido sempre certinha e fosse trocada por outra, uma bem louca?
Mas é inútil pensar em como poderia ter sido se, se, se: é domingo e ela está só. Talvez menos só do que as tantas vezes em que esteve rodeada de pessoas que aparentemente eram amigas e por um homem que aparentemente a amava.
Hoje é domingo, mas amanhã é segunda e depois vem a terça, a quarta, a quinta, a sexta e o sábado. E os domingos nunca são fáceis.
E-mail - danuza.leao@uol.com.br



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