São Paulo, sábado, 12 de setembro de 1998

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LETRAS JURÍDICAS

Reputação ilibada

WALTER CENEVIVA
da Equipe de Articulistas

Há, no Brasil, cargos para os quais a lei exige reputação ilibada, ou seja, fama ou renome sem mancha. Servem de exemplo ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Para outros, no que é verdadeiro paradoxo criado pelo constituinte de 1988, reputação ilibada não basta, pois para ministros do Tribunal de Contas da União a Constituição também impõe a idoneidade moral. Não é fácil explicar para que serve a dupla imposição, quando dispensada nas duas mais importantes cortes judiciárias do país. Sugeriria a insuficiência da reputação sem mácula, o que levaria ao absurdo.
As distinções oferecem outras curiosidades. Os ministros do STF e do STJ devem ter notável saber jurídico, mas basta, para os do Tribunal de Contas da União, o notório conhecimento jurídico, entre outras qualidades. A distinção é inócua, embora os juristas digam que a lei não contém vocábulos inúteis. Saber e conhecimento, tanto quanto notável e notório, são palavras ocas. Dependem dos valores subjetivos de quem as aplique.
Para presidente da República, para deputado e senador, nada disso é exigido. Eleitos pelo voto popular, submetem-se a variáveis limites de idade. Não carecem de saber ou conhecimento. Basta que não sejam analfabetos. O presidente da República deve cumprir a lei e manter a probidade administrativa, mas nem sequer pode ser processado por crimes comuns, como aconteceria com o adultério não perdoado pela mulher.
Nos Estados Unidos, sob desculpa de exigirem reputação ilibada de seu presidente, os discursos moralistas esquecem a história. Clinton errou e errou feio, mas não está só. Houve líderes de porte, mas maridos nem sempre fidelíssimos, como Roosevelt e John Kennedy, este com a vantagem do inegável bom gosto. Nem sempre houve presidentes abstêmios, nos moldes do general Ulysses Grant ou de probidade negocial e familiar inatacável (trazendo Andrew Jackson à memória). Tem significado histórico o sempre lembrado desequilíbrio mental de Woodrow Wilson. Grandes líderes imaculados raramente habitam o mundo da política.
Clinton tem razão num ponto: questões da vida privada do presidente da República não são da conta de ninguém, apesar da importância de seu cargo. Hillary Clinton o perdoou e basta. George Washington, o campeão da independência norte-americana, dificilmente estará sentado à mão direita de Deus Pai, mas seu imenso relevo histórico não se prejudica por isso. A preservação do decoro, o que envolve em si mesmo uma dose de hipocrisia (decoro em política tem sido, com triste frequência, a arte de não ser pego), preserva a dignidade formal e o simbolismo do cargo. Erigi-la, porém, em motivo de perturbação do próprio exercício das altas funções ofende os milhões que votaram no eleito. O oposto parece pensável somente nos Estados Unidos, para espanto e divertimento da parte do mundo que ficou livre dos mísseis Tomahawk.
A palavra decoro tem uma certa vantagem para definir o que se espera dos líderes políticos. É lamentável que, muitas vezes, decoro seja confundido com a ação que, embora irregular, termina sem ser descoberta. No processo por ofensa ao decoro o senso de justiça se afoga na valoração política e no escândalo da mídia, interferindo contra ou a favor do acusado. No caso norte-americano a valoração política gerou perdas irreparáveis para a nação, também provocadas pela lamentável figura do promotor independente. Passado um mês da confissão de Bill Clinton, fico espantado de verificar que o templo da hipocrisia e do farisaísmo está lotado. Mas quem vai acabar chicoteado é aquele que confessou seu erro.



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