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LETRAS JURÍDICAS
Reputação ilibada
WALTER CENEVIVA
da Equipe de Articulistas
Há, no Brasil, cargos para
os quais a lei exige reputação
ilibada, ou seja, fama ou renome sem mancha. Servem de
exemplo ministros do STF
(Supremo Tribunal Federal) e
do STJ (Superior Tribunal de
Justiça). Para outros, no que é
verdadeiro paradoxo criado
pelo constituinte de 1988, reputação ilibada não basta,
pois para ministros do Tribunal de Contas da União a
Constituição também impõe a
idoneidade moral. Não é fácil
explicar para que serve a dupla imposição, quando dispensada nas duas mais importantes cortes judiciárias do
país. Sugeriria a insuficiência
da reputação sem mácula, o
que levaria ao absurdo.
As distinções oferecem outras curiosidades. Os ministros do STF e do STJ devem ter
notável saber jurídico, mas
basta, para os do Tribunal de
Contas da União, o notório
conhecimento jurídico, entre
outras qualidades. A distinção é inócua, embora os juristas digam que a lei não contém vocábulos inúteis. Saber e
conhecimento, tanto quanto
notável e notório, são palavras ocas. Dependem dos valores subjetivos de quem as
aplique.
Para presidente da República, para deputado e senador,
nada disso é exigido. Eleitos
pelo voto popular, submetem-se a variáveis limites de
idade. Não carecem de saber
ou conhecimento. Basta que
não sejam analfabetos. O presidente da República deve
cumprir a lei e manter a probidade administrativa, mas
nem sequer pode ser processado por crimes comuns, como
aconteceria com o adultério
não perdoado pela mulher.
Nos Estados Unidos, sob
desculpa de exigirem reputação ilibada de seu presidente,
os discursos moralistas esquecem a história. Clinton errou
e errou feio, mas não está só.
Houve líderes de porte, mas
maridos nem sempre fidelíssimos, como Roosevelt e John
Kennedy, este com a vantagem do inegável bom gosto.
Nem sempre houve presidentes abstêmios, nos moldes do
general Ulysses Grant ou de
probidade negocial e familiar
inatacável (trazendo Andrew
Jackson à memória). Tem significado histórico o sempre
lembrado desequilíbrio mental de Woodrow Wilson.
Grandes líderes imaculados
raramente habitam o mundo
da política.
Clinton tem razão num
ponto: questões da vida privada do presidente da República
não são da conta de ninguém,
apesar da importância de seu
cargo. Hillary Clinton o perdoou e basta. George Washington, o campeão da independência norte-americana,
dificilmente estará sentado à
mão direita de Deus Pai, mas
seu imenso relevo histórico
não se prejudica por isso. A
preservação do decoro, o que
envolve em si mesmo uma dose de hipocrisia (decoro em
política tem sido, com triste
frequência, a arte de não ser
pego), preserva a dignidade
formal e o simbolismo do cargo. Erigi-la, porém, em motivo
de perturbação do próprio
exercício das altas funções
ofende os milhões que votaram no eleito. O oposto parece
pensável somente nos Estados
Unidos, para espanto e divertimento da parte do mundo
que ficou livre dos mísseis Tomahawk.
A palavra decoro tem uma
certa vantagem para definir o
que se espera dos líderes políticos. É lamentável que, muitas vezes, decoro seja confundido com a ação que, embora
irregular, termina sem ser
descoberta. No processo por
ofensa ao decoro o senso de
justiça se afoga na valoração
política e no escândalo da mídia, interferindo contra ou a
favor do acusado. No caso
norte-americano a valoração
política gerou perdas irreparáveis para a nação, também
provocadas pela lamentável
figura do promotor independente. Passado um mês da
confissão de Bill Clinton, fico
espantado de verificar que o
templo da hipocrisia e do farisaísmo está lotado. Mas quem
vai acabar chicoteado é aquele que confessou seu erro.
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