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MOACYR SCLIAR
Os trigêmeos imaginários
Lá pelas tantas ele percebeu que as lágrimas corriam pelo rosto dela. E não lhe era difícil adivinhar a razão
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A Receita Federal decidiu apertar o cerco contra fraudes em deduções do Imposto de Renda (IR) praticadas sobretudo pela classe média. "Para ampliar o limite de dedução com saúde, educação e
dependentes, são inseridos filhos fictícios, tornando-se comuns declarações
que mencionam filhos gêmeos e trigêmeos", informa relatório de inteligência
do fisco ao qual a Folha teve acesso.
Dinheiro, 6 de outubro de 2009
QUANDO ele recebeu a notificação da Receita, convocando-o para dar esclarecimentos quase teve uma parada cardíaca. Sabia exatamente do que se tratava.
Num esforço para conseguir uma
redução do imposto, declarara-se
pai de três filhos. Trigêmeos: o dado
era importante, porque tinha apenas um ano e meio de casado. Trigêmeos não são tão raros, e ele achou
que a informação seria aceita sem
contestação. A notificação mostrava
que isso não acontecera.
E agora? Como enfrentar a ameaça? Uma possibilidade seria arranjar
emprestado trigêmeos de poucos
meses e levá-los à Receita. Mas, para
começar, ele não conhecia ninguém
que tivesse trigêmeos. Além disso,
sempre havia a possibilidade de que
algum funcionário mais zeloso exigisse um exame do DNA que comprovaria a fraude.
Não, o melhor seria ir sem bebê algum. O melhor seria arranjar uma
foto -até na internet poderia obtê-la- e, usando essa foto, falar sobre
as três crianças, falar muito, como
pais orgulhosos costumam falar sobre seus filhos.
Para isso precisaria da ajuda da
mulher, que tinha mais sensibilidade, mais imaginação, mais intuição.
Contou o que tinha acontecido, recebeu a inevitável recriminação
("Eu disse a você que não mentisse,
que a mentira tem pernas curtas"),
mas, companheira que era, ela dispôs-se a ajudá-lo. Ficaram horas
imaginando os trigêmeos, àquela altura com um ano e dois meses. Meninos, de acordo com o pedido dele.
Mas foi ela quem deu os nomes:
Eduardo (Dudu), Luís (Lulu), Fernando (Nando). Eduardo era o mais
velho, e também o mais travesso.
Lulu tinha um sorriso encantador,
Nando era de uma inteligência surpreendente. Inventaram várias
aventuras, contaram como os garotos brigavam pela mamadeira.
Falariam também das noites em
claro, das doenças que os bebês
haviam tido, uma delas levando à
hospitalização dos três. Um transe
difícil que eles, no entanto, haviam
superado. Lá pelas tantas ele percebeu que as lágrimas corriam pelo
rosto dela. E não lhe era difícil adivinhar a razão.
Não tinham filhos. Motivo: grana
curta. Ele era sócio de uma pequena
empresa que estava sempre à beira
da falência. Ela trabalhava como balconista numa loja e ganhava pouco.
Filhos? Só quando a situação melhorasse, dizia ele, categórico. Isso,
constatava-o agora, dolorosamente,
tinha seu preço. A Receita jamais o
chamaria para saber por que não tinha filhos; mas que a consciência lhe
pesava, ah, pesava, e muito.
Foi à Receita. Não, o problema
não era com os trigêmeos, era um
pequeno erro na declaração. Mas ele
estava disposto a corrigir todos os
erros de sua vida. Admitiu que não
era pai de trigêmeos, ofereceu-se para fazer uma retificação. E saiu dali
feliz. Breve ele se tornaria pai.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.
moacyr.scliar@uol.com.br
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