|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CIDADE DE DEUS
Moradores de local retratado pela obra afirmam que preconceito se manifesta na hora de buscar emprego e crédito
Filme gera discriminação, dizem favelados
FERNANDA MENA
DA REPORTAGEM LOCAL
"Cidade de Deus", o filme brasileiro recordista de público desde
1990 (mais de 3 milhões de espectadores), ao retratar uma condição social que, até então, poucos
haviam visto tão de perto -a
guerra travada pelo tráfico de
drogas dentro de favelas brasileiras-, acabou se voltando contra
parte das próprias vítimas de tal
situação.
Os moradores da Cidade de
Deus de verdade, onde aconteceram as histórias narradas no filme
de Fernando Meirelles e Kátia
Lund (baseado no livro homônimo de Paulo Lins), afirmam que,
depois da estréia da obra, tornaram-se alvo de discriminação.
O preconceito se revelaria tanto
no comportamento da polícia,
que, segundo eles, promove ações
cada vez mais ostensivas na favela, quanto na hora de conseguir
emprego ou crédito.
"Esculacharam a favela!", disse
à reportagem da Folha um comerciante de 45 anos, que preferiu não se identificar. "Depois disso aí, quando souberam que eu
era da Cidade de Deus, ficou mais
difícil abrir um crediário."
"Tem casos de meninos aqui
que foram procurar emprego e,
quando leram no currículo o endereço onde moravam, disseram
apenas que iriam enviar uma carta com o resultado da seleção. Os
meninos estão esperando essas
cartas até hoje. E elas nunca vão
chegar", conta o líder comunitário Jorge Vilela, 42, que desde 1971
vive na CDD -como os moradores chamam a favela.
Para estudante Paulo (nome fictício), 19, o pior foi a mudança da
abordagem policial com os moradores. "A gente já não era tratado
pela polícia de uma maneira legal.
Parece que piorou ainda mais.
Agora, eles acham que todo mundo aqui é bandido, traficante ou
está envolvido com o tráfico."
Ao focar o enredo do filme nos
traficantes e bandidos da CDD, o
filme, de acordo com os moradores, generalizou o banditismo.
O livro de Paulo Lins, ex-morador da Cidade de Deus, no qual o
filme se fundamenta, foi baseado
em uma pesquisa realizada sob a
orientação da antropóloga Alba
Zaluar, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Segundo um levantamento feito
por Zaluar e Lins nos anos 80, menos de 2% das pessoas que viviam
na favela tinham alguma relação
com o tráfico ou com outra atividade criminosa.
Polícia e emprego
De acordo com o tenente-coronel Marco Aurélio Moura, comandante do 18º DPO (Destacamento de Policiamento Ostensivo), que fica dentro da Cidade de
Deus, a polícia não aumentou
nem diminuiu as operações.
"O número de apreensões, prisões, operações e ocorrências é
bastante similar ao longo dos últimos oito meses, ou seja, antes e
depois do filme", diz.
Segundo Moura, o que ele percebeu foi que os moradores "repudiaram o filme". "Muita gente
veio falar comigo. Eles acham que
o filme colocou a CDD muito em
evidência, mas a grande preocupação da comunidade é conseguir
emprego. Eu até intercedi na Associação Comercial e Industrial
de Jacarepaguá para que não considerassem o conteúdo do filme
na hora de selecionar o pessoal
para empregos."
O diretor-executivo da associação, Augusto Torres, 69, diz que
não há restrições a moradores da
Cidade de Deus nas empresas da
região. "Mas acredito que, fora
daqui, a coisa seja diferente",
pondera. "Se algum jovem procurar emprego em um shopping,
por exemplo, e o empregador
identificar que ele mora na Cidade de Deus, é bem possível que
prefira ter o jovem o mais longe
possível."
Nome aos bois
Os moradores da Cidade de
Deus criticam o filme não por ele
mostrar a situação de quem vive
em favelas dominadas pelo tráfico, mas por ter dado nome e endereço aos bois.
De acordo com José Neves, 75,
presidente da União Comunitária
da Cidade de Deus e morador do
bairro há 30 anos, o filme "desmoralizou a comunidade e marginalizou seus moradores ao mostrar uma situação que não corresponde à realidade atual da CDD".
"O autor do livro e o diretor do filme se deram bem, mas a comunidade ficou na pior."
José Francisco Santana, 61, vice-presidente da União Comunitária
e morador da CDD há 31 anos, diz
ter ficado chocado. "A gente quer
melhorar a imagem da Cidade de
Deus e trabalha 24 horas por dia
para isso. E, quando a gente está
começando a conseguir um resultado, vem um filme desses, contando várias mentiras, e coloca
um trabalho de anos abaixo."
O comerciante Luís Antônio,
42, diz estar se sentindo usado.
"Eles exploraram a história da comunidade, não fizeram o filme
aqui e não deram nenhum benefício para a gente."
Mesmo entre os adolescentes da
Cidade de Deus, que em sua
maioria se empolgaram com toda
a ação do filme, há uma certa desconfiança. Marília (nome fictício), 12, achou o filme "legal", mas
pouco representativo do lugar onde mora. "Agora, meus colegas da
escola acham que aqui é barra-pesada, que todo mundo rouba, que
isso, que aquilo. Tudo por causa
das coisas que aparecem no filme.
E disso eu não gostei, não."
Texto Anterior: Estradas: Acidente mata duas pessoas e fere outras 15 na rodovia Anhanguera Próximo Texto: Uso de nomes reais é criticado Índice
|