São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2000


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MISÉRIA S.A.
Pedintes têm ajudantes, ponto fixo e turno de trabalho definido; muitos exploram trabalho infantil
Disputa por ponto cria "mendigo 24 h"

Marlene Bergamo/Folha Imagem
Carla Gonçalves, que preferiu deixar o emprego e pedir esmola


GONZALO NAVARRETE
ALESSANDRO SILVA
da Reportagem Local

A velha imagem do pedinte errante que peregrinava pela cidade de São Paulo em busca de trocados ou de um prato de comida na porta das casas acabou. A disputa pela esmola levou os mendigos à "profissionalização" e a trocar o dia pela noite para escapar da concorrência nos semáforos.
Hoje, os pedintes têm ajudantes, ponto fixo e turno de trabalho. O fenômeno coincide com o surgimento do comércio 24 horas, que começou a ganhar força a partir da década de 90, com a abertura de supermercados, lanchonetes e videolocadoras.
A esmola 24 horas, agravada pelo aumento do desemprego, deu origem à indústria da miséria -um ramo lucrativo que envolve a exploração de mão-de-obra infantil, mentiras e até confrontos para manter o controle dos pontos de exploração.
O índice de desemprego na Grande São Paulo bateu recorde histórico nos meses de abril e maio do ano passado, quando superou a marca de 1,8 milhão de pessoas. Foi o maior índice desde 1985, quando esse tipo de pesquisa começou a ser feita.

Luta
No vale-tudo para sobreviver, uma história inventada pode dar dinheiro. É o caso do pedinte que se identifica no metrô de São Paulo como Carlos Eduardo Caetano e diz ser portador do vírus HIV.
Magro, baixo, de fala mansa, Caetano frequenta rotineiramente a linha norte-sul, dizendo que está pedindo para não morrer. ""O governo me dá parte dos meus remédios, mas tem um que está em falta e que custa muito caro. Estou aqui pedindo (pausa) porque quero continuar vivo", disse Caetano na última quarta-feira.
Tudo acontece entre duas estações -Armênia e Tiradentes-, escondido dos seguranças. Um homem tira do bolso uma nota de R$ 10, outro uma de R$ 5 e surgem várias moedas e notas de R$ 1. Quase R$ 30, segundo contagem da reportagem da Folha, em apenas um vagão.
Detalhe: o remédio citado por ele, o ddI (uma das drogas do coquetel) não está em falta e é distribuído gratuitamente, segundo os programas de DST/Aids.
Em outra região da cidade, os flanelinhas ganham esmola em troca do trabalho que criaram: olhar o carro dos outros.
A função fez com que Cláudio Ribeiro da Silva, 26, desistisse de procurar emprego registrado. Ele é "dono" de um ponto na Vila Mariana e ganha R$ 2.000 por mês, trabalhando das 20h às 4h.
Silva mora em Guarulhos (Grande São Paulo) e há cinco anos se desloca todos os dias para São Paulo. Antes de sair de casa, ele acompanha os principais eventos de São Paulo pelos jornais (shows, jogos) para descobrir se não existem pontos mais lucrativos do que o seu.
O que não conseguiu como empregado, ganhou como flanelinha. Hoje tem terreno e ajudou a família a construir uma casa. Cada centímetro do ponto é defendido como se fosse um tesouro. ""Às vezes, a gente sai na porrada."
Para o antropologista José Guilherme Magnani, a disputa por pontos virou uma guerra de mercado pela apropriação do espaço público mais rentável.
"A mendicância deixou de existir como um simples apelo à caridade e uma simples questão de sobrevivência", disse Magnani, especializado em estudos urbanos . "Ela virou um cálculo racional, onde os pedintes estão sempre à procura de novos nichos, seguindo a lógica dos empresários: buscar maior rentabilidade."


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