São Paulo, segunda-feira, 13 de maio de 2002

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MOACYR SCLIAR

O direito ao orgasmo

 Dia do Orgasmo agita cidade do Piauí. Cotidiano, 9.mai.2002

Durante os 20 anos que já durava o casamento, ela sofreu em silêncio. Mas, quando viu a notícia no jornal, sentiu que chegara o momento de dar um basta à situação. Afinal, se mulheres humildes de uma cidadezinha no interior do Piauí falavam livremente em orgasmo, ela também podia pretender esse direito. Teria de superar os muitos anos de uma educação repressiva e sua própria tendência para o conformismo e dizer ao marido, com todas as letras, que queria, como qualquer mulher normal, ter orgasmo.
Não seria um diálogo fácil. O marido era um homem autoritário, irascível. Durante todo o dia, tentou ensaiar o que iria dizer -e chegou à desanimadora conclusão de que nem ao menos sabia como entrar no assunto. Optou, pois, por outra tática. Quando o marido chegou, naquela noite -cansado e irritado como sempre-, ela mostrou-lhe o recorte do jornal. Ele leu, testa franzida e encarou-a:
- Que é isso, mulher? Por que você está me mostrando essa idiotice?
Esse seria o momento em que ela deveria expressar seu protesto: quero ter meu orgasmo, nunca soube o que é isso. Mas ficou calada, paralisada de terror. Ele fitava-a, em silêncio. Por fim, deu-se conta:
- Já sei. Você virou feminista. Quer reclamar que não tem orgasmo. Acertei?
Ela não sabia o que responder. Esperava um sermão: você não tem orgasmo porque não quer, no fundo você não passa de uma mulher frígida e ressentida. Mas o rosto dele se abriu num sorriso:
- Pois fique sabendo que você está certa. Você tem, sim, direito ao orgasmo.
Estupefata, ela ouvia aquelas surpreendentes palavras -diferentes de tudo o que o marido lhe dissera ao longo da vida matrimonial. Ele já continuava:
- Vamos tomar providências. Você quer um Dia do Orgasmo? Pois você terá um Dia do Orgasmo. Será um dia em que você chegará ao orgasmo nem que tenhamos de passar 24 horas tentando. Para mim, será complicado, você sabe que eu sou um homem ocupado, mas estou disposto a fazer essa concessão. Vamos, então, adotar o nosso Dia do Orgasmo. Que tal o 29 de fevereiro?
Por um momento, ela ficou em silêncio. Mas, então, e, num espasmo de coragem -o equivalente a um orgasmo da dignidade-, ela ouviu -e com espanto- a sua própria voz num débil protesto:
- Mas 29 de fevereiro só acontece de quatro em quatro anos.
Ele explodiu:
- E você queria orgasmo todos os anos? É isso o que acontece quando mulher vira feminista: a gente dá um dedo, ela quer a mão. Orgasmo bissexto, mulher: é pegar ou largar.
Largou. Naquela mesma noite, fez a mala e saiu de casa. Não sabia direito qual o seu destino. Mas certa cidadezinha no interior do Piauí lhe parecia muito promissora.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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