São Paulo, Domingo, 13 de Junho de 1999
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AMORES DIFÍCEIS
Proximidade entre Penitenciária do Estado e Feminina permite comunicação e relacionamentos estáveis
Presos namoram com a
língua do "abano"

CLÁUDIA TREVISAN
da Reportagem Local

Silvana Nascimento Silva, 24, demora pouco mais de um minuto para dizer "eu te amo" a Marcelo, 31, o namorado que nunca viu a menos de 150 metros e no qual nunca tocou, mas com quem está há quase dez meses.
Os dois fazem parte das centenas de casais que praticam o "abano" nas penitenciárias do Estado (masculina) e Feminina de São Paulo, localizadas lado a lado no mesmo complexo onde fica a Casa de Detenção do Carandiru.
Favorecidos pela proximidade, presos e presas conversam, trocam juras de amor, prometem fidelidade e "fazem" sexo por meio do abano, uma linguagem na qual cada abanada de braço representa uma letra do alfabeto. O "a" é dito com uma abanada e o "p", com 15 (o alfabeto dos presos não inclui o "k").
É uma forma de amor trabalhosa, mas que a prática torna quase automática. Antônio Carlos, condenado a 169 anos e preso há 23, não vacila ao dizer com quantas abanadas se diz "eu te amo": 5, 20, 19, 5, 1, 12 e 14.
O abano cria relacionamentos estáveis, regidos por regras semelhantes às dos namoros que ocorrem fora das grades. Exige-se fidelidade, o ciúme é grande, as brigas são frequentes e os planos para o futuro, corriqueiros.

"Pedalada"
Tudo começa com uma "pedalada", movimento de braços para a direita e para a esquerda com o qual o preso, ou a presa, indica que está em busca de alguém com quem abanar -verbo que no dicionário da cadeia é sinônimo de namorar. A "pedalada" passa a ser vista como traição depois que o relacionamento se estabelece. A partir daí, os namorados passam a "telefonar": giram o braço só para a direita com o objetivo de chamar a atenção do parceiro.
Depois da "pedalada", vêm os abanos, feitos normalmente com panos para aumentar a visibilidade dos gestos.
"A gente se apega e se apaixona", diz Marisa Ferreira dos Santos, 32. Presa há quatro anos por co-autoria em homicídio, Marisa tem de se esforçar mais que a maioria de suas colegas para conseguir se comunicar com Luciano, seu namorado há pouco mais de um ano.
Como não consegue ver direito a cela do companheiro a partir da sua, Marisa usa um espelho para enxergar os abanos.
Depois de conhecerem os nomes de seus parceiros e começarem o relacionamento, os presos passam a trocar cartas, fotos e cartões.
Mas o abano continua a ser a forma de comunicação diária. É feito pela manhã, na hora do almoço, no fim da tarde e à noite. "O abano fica muito forte. A gente troca bom-dia todas as manhãs e conversa sobre tudo", conta Antônio Carlos, que há cinco meses namora Telma Maria de Jesus, 38, condenada a 12 anos por tráfico de drogas.
Os três presos que deram entrevista à Folha pediram para não ser identificados. Uma das razões é que os homens recebem visita íntima na prisão de outras mulheres.

Ciúme
A fidelidade entre os abanadores é garantida por um código de ética implacável. O preso, ou presa, que tem um parceiro é "interditado" e não recebe abanos de ninguém.
Clarice Faustino, 36, ficou interditada por dois anos. Seu namorado foi transferido para a Penitenciária de Taubaté e proibiu seus colegas de abanarem com ela.
Condenada a 13 anos por homicídio e presa há 9 anos, Clarice escreveu em vão várias cartas ao antigo namorado pedindo que a interdição fosse suspensa. "Ele respondia que tinha se apegado e que não queria que eu abanasse com mais ninguém."
A "libertação" só veio há três meses, quando um primo de Clarice foi preso na Penitenciária do Estado e convenceu os colegas a levantarem sua interdição. Desde então, ela namora Maurício.

Gestos
O abano não é a única forma de os presos "conversarem". A partir das 16h30, quando as presas deixam o trabalho e vão para o pátio do presídio, começa um namoro mais explícito, com gestos que simulam carinhos, abraços, paixão e beijos (veja fotos abaixo).
Do pátio, as presas são vistas pelos presos que se apinham nos janelões existentes no final de cada um dos três pavilhões da Penitenciária do Estado.
Ali, elas desenvolvem uma coreografia amorosa definida. Fazer um coração com os braços quer dizer "eu te amo". Abrir os braços é "chamar para o abraço", abraçar o corpo equivale a envolver o outro e "alisar" o ar com as mãos é acariciar o corpo do namorado.



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