São Paulo, quinta, 13 de agosto de 1998

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INCULTA & BELA
"Mal criadas' ou "malcriadas'?

PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha


Como se escreve: "dia-a-dia" ou "dia a dia"? Depende. "Dia-a-dia" é substantivo. Significa "a sucessão dos dias, o viver cotidiano": "Seu dia-a-dia é o mesmo desde que entrou na faculdade".
"Dia a dia" é expressão adverbial. Equivale a "com o correr dos dias, cotidianamente": "A situação dele se complica dia a dia".
Quem consulta o dicionário não pode ter pressa. Nem preguiça. O cidadão vai para a letra "d", encontra "dia-a-dia", não lê, mas conclui que "tem hífen". Depois erra e diz que Deus não ajuda.
É preciso ler a explicação. Na verdade, é preciso aprender a consultar o dicionário, o que não se limita a ser capaz de localizar a palavra.
Para encontrar a expressão "dia a dia", por exemplo, é preciso procurar a palavra "dia" e, depois de todas as acepções, ler as expressões em que o vocábulo é empregado.
Outra pedrinha é a palavra "mal". Uma consulta rápida é o caminho para o equívoco. Encontra-se, por exemplo, a palavra "malcriado", sem hífen, ou seja, "tudo junto", como se costuma dizer.
O que vem a ser um indivíduo "malcriado"? É um indivíduo descortês, indelicado, grosseiro, mal-educado.
Será que sempre se escreve "malcriado"? Veja este exemplo, tirado da canção "Geração Perdida", interpretada por Daniela Mercury: "As crianças mal criadas, nascidas com a televisão". É exatamente assim que está na letra impressa no encarte do disco.
Associe o título da música à expressão citada no parágrafo anterior, levando em conta as palavras "mal" e "criadas", separadas . Faz sentido, não?
O que são crianças "mal criadas"? Afirma-se que quem as cria não executa competentemente a tarefa. O advérbio "mal" está modificando a forma verbal "criadas".
É por isso que as palavras não se juntam. Cada uma preserva sua autonomia, sua identidade. No caso do adjetivo "malcriado", as palavras se juntaram justamente porque perderam sua autonomia.
É mais do que claro que no encarte do disco a letra foi impressa corretamente, de acordo com o contexto.
Um último caso: "à toa" e "à-toa". Os dicionários dizem que a primeira é expressão adverbial. Equivale a "a esmo, ao acaso, sem ocupação, sem ter que fazer": "Estava à toa na vida/ o meu amor me chamou/ pra ver a banda passar/ cantando coisas de amor".
É o começo da inesquecível marcha "A Banda", de Chico Buarque. Também se pode citar Bandeira: "Andorinha, minha cantiga é mais triste. Passei a vida à toa, à toa".
Já "à-toa" é adjetivo. Significa "desprezível, vil, insignificante": "Não passa de um homem à-toa".
Que fique a lição! Quando consultar dicionários, nem pressa, nem preguiça. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

E-mail: inculta@uol.com.br



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