São Paulo, domingo, 13 de outubro de 2002

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CIDADANIA

ONG ensina menor carente a fotografar com câmera artesanal; técnica estimulou reflexão sobre sua realidade

Foto muda vida de jovens carentes de SP

Marlene Bergamo/Folha Imagem
Garoto fotografa com máquina de lata feita por ele próprio


LIANE FACCIO
DA REDAÇÃO

Perto da casa de Joaquim Marcelino Pereira, 17, no bairro de Americanópolis, zona sul de São Paulo, existe um córrego ao qual ele nunca havia prestado atenção até tirar uma foto da paisagem. "Vi como é sujo", conta Joaquim. "Parei de jogar lata de refrigerante pela janela do ônibus. Sei que pode causar enchente."
A mudança de atitude processada em Joaquim foi motivada pelas Oficinas do Olhar criadas pela Imagem Mágica, uma organização não-governamental que ensina jovens da periferia a fotografar com câmeras feitas artesanalmente.
Além de aprender a construir o artefato em latas de alumínio, os adolescentes recebem noções básicas de fotografia e, depois, saem pelo bairro onde vivem à caça de imagens. Com os filmes revelados, são estimulados a refletir sobre o material que captaram.
"Quando um menino desses está fotografando, documentando sua realidade, vê que não está sozinho no mundo", afirma o fotógrafo André François, 35, fundador da ONG.
Exagero? Para a maior parte dos 850 jovens que já participaram das oficinas, isso pode fazer toda a diferença. Em sua maioria residentes na periferia de São Paulo, eles convivem com a violência, familiar ou institucional, partilham de uma realidade de exclusão social e comungam experiências que ninguém gostaria de emoldurar em porta-retratos.
Henrique, 17, que esconde o nome completo, diz ser revistado por policiais todos os dias, a caminho da escola, porque é negro. Furtava, ele não nega. Mas parou, jura. Uma foto deu-lhe um estalo.
"Ele fez a foto de um portão cravado de balas por causa de um tiroteio que ocorreu na rua onde mora. Conversamos muito, e ele acabou concluindo que uma daquelas balas podia ter tirado a vida dele, da mãe ou de um irmão", explica a cientista social Raquel Amadei Barbiellini, 26.
Como coordenadora das oficinas da Imagem Mágica montadas em parceria com outra ONG, a Aldeia do Futuro, Raquel coleciona histórias de adolescentes que, como Henrique, demonstram um forte desejo de mudança.
Robson Cajado dos Santos, 17, por exemplo, afirma que sua vida era "cruel" e que ele parou de fazer "coisas erradas" depois de virar fotógrafo da lata.
Mudanças dessa profundidade são o alvo perseguido pelos oito profissionais contratados pela Imagem Mágica e mais 15 voluntários que trabalham sob o lema "Perceber o mundo em que se vive é o primeiro passo para modificá-lo". Mas nem sempre a transformação é possível.
"Convivemos com adolescentes em situação de risco, alguns jurados de morte, outros em liberdade assistida, e volta e meia perdemos um", conta François. Também é comum ver o trabalho de reconstrução da auto-estima dos alunos desabar com o resultado de um teste positivo de AIDS ou de violência doméstica.
Os casos de recuperação também são numerosos. A parceria com a Aldeia do Futuro é repleta de bons exemplos. "Eles se tornaram mais críticos, menos briguentos, aprenderam a negociar. Até o vocabulário está mudando", afirma a diretora-pedagógica da Aldeia, Genilva Borges, 49.
Para Joaquim, que "enxergou" o córrego poluído perto de casa, há um ganho a mais. Exímio dançarino de break -que acreditava ser sua vocação-, ele aposta em outra opção profissional: estuda para ser assistente de fotografia.


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