São Paulo, quarta-feira, 13 de outubro de 2004

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A cidade da cocaína e da carnificina

TOM PHILLIPS
THAIS VIALLELA

DO "INDEPENDENT", NO RIO

Escaldadas ao sol da tarde de sexta-feira, cerca de 300 pessoas levam o carnaval a um cemitério de subúrbio, na zona oeste do Rio. O grupo está cantando um samba. Seu rei -um dos mais notórios traficantes de drogas da cidade- foi morto, o corpo dilacerado por 12 tiros. Reunida em torno da sepultura, a massa canta com vontade, gritando: "Ei, ei, ei, Escadinha é o nosso rei".
"Tenho muito orgulho dele", clama Rosemar Encina, mulher do lendário bandido. Do lado de fora, cinco tiros soam em tributo ao homem conhecido, com deferência, pelo apelido Seu Zé.
Trinta e seis horas antes, José Carlos dos Reis Encina, mais conhecido como Escadinha, estava dirigindo a caminho do trabalho. Ele passava os dias fora da prisão onde cumpre sua sentença. Sem aviso, uma motocicleta fechou o seu Vectra prateado, e o carona disparou diversos tiros de fuzil contra o carro. Minutos mais tarde, um herói popular do crime organizado brasileiro no século 20 estava estendido no meio da movimentada avenida, cercado por uma poça de sangue. Os transeuntes disputavam espaço como abutres, tentando observar o corpo de Encina, 49.
Como o traficante Zé Pequeno, um dos protagonistas fictícios do premiado filme "Cidade de Deus", Escadinha foi o chefão do comércio de cocaína do Rio de Janeiro nos anos 80, e era um dos líderes de uma das maiores organizações brasileiras de tráfico de drogas, o Comando Vermelho. Sua morte foi o capítulo final de uma vida repleta de ação.
Acredita-se que tenha organizado a tentativa de seqüestrar a princesa Anne, irmã da rainha Elizabeth, durante uma visita ao Brasil em 1986. Mas Escadinha ganhou nome, muito literalmente, com sua tensa fuga do presídio da Ilha Grande, a resposta brasileira a Alcatraz, na véspera do Ano Novo, em 1985. Em plena luz do dia, um helicóptero seqüestrado por Gordo, parceiro de Escadinha no crime, pousou no pátio e o tirou da prisão.
Horas mais tarde, ele estava de volta ao comando do tráfico de cocaína na favela do Juramento. Ostentando a liberdade reconquistada, Escadinha chegou a participar de desfiles de carnaval no ano seguinte, vestido como uma voluptuosa mulher.
"Ele sempre foi conhecido pelo seu espírito de aventura", disse Carlinhos Costa, criado na favela da Rocinha no auge do reino de Escadinha.
Mas, em 23 de setembro, sua sorte não funcionou. Depois de receber diversos disparos na cabeça, a curta distância, o corpo de Escadinha estava quase irreconhecível, estendido no asfalto escaldante da avenida Brasil. O rei estava morto.
O assassinato pontuou um mês explosivo na ininterrupta guerra das drogas que toma o Rio. As favelas da cidade estão irrompendo em violência que muitas vezes se equipara aos conflitos da Tchetchênia e do Sudão em termos de intensidade, se não em destaque na mídia.
Com as ferozes disputas por território que estão sendo deflagradas no Rio, muita gente teme agora que a cidade esteja à beira do abismo. O Rio de Janeiro tem o mais alto índice de mortos por disparos de arma de fogo no país. Entre 1980 e 2000, houve 600 mil assassinatos no Brasil, ante 350 mil nos 27 anos de guerra civil em Angola. No começo deste ano, um esconderijo contendo oito minas e 161 granadas de mão foi localizado na favela da Coréia, na zona oeste do Rio.
"Ninguém sabe ao certo quantas armas existem na cidade", reconheceu Benjamin Lessing, especialista em desarmamento no Rio de Janeiro.
A quilômetros de distância das areias douradas de Copacabana, conflitos mortíferos se desenrolam entre jovens traficantes de drogas com apelidos dignos de personagens de desenho animado, como Dudu. Perto da estrada que liga o aeroporto internacional do Galeão à mundialmente famosa praia de Ipanema, localizam-se algumas das favelas mais explosivas do mundo. Para os cariocas, a área ficou conhecida como Faixa de Gaza. Entre 1987 e 2001, cerca de 4.000 habitantes do Rio morreram violentamente, ante apenas 467 na Cisjordânia, que é oficialmente reconhecida como uma zona de guerra.
Na fronteira entre a Baixa do Sapateiro e a Nova Holanda, duas favelas que integram a resposta brasileira a Gaza, existe uma escola vazia. Suas paredes estão recobertas por furos de balas. Na rua vizinha, conhecida localmente como Fogo Cruzado, devido às freqüentes batalhas travadas a tiros entre facções rivais de traficantes, cartuchos vazios recobrem o pavimento.
"Nunca se sabe quando pode começar um tiroteio ou de onde os tiros podem surgir", diz Ayrton Ribeiro, assistente social na região, enquanto cruza uma das saídas pútridas de esgoto nas quais os traficantes muitas vezes despejam cadáveres. "Não existe futuro aqui."
Após a era de Escadinha, os traficantes se tornaram cada vez mais impiedosos. Dudu, que tentou invadir a Rocinha alguns meses atrás, supostamente teria servido rivais como refeição ao seu jacaré de estimação. Outros comandantes do tráfico de drogas tratam inimigos com brutalidade semelhante, forçando-os a nadar por esgotos a céu aberto ou queimando-os nos chamados microondas, crematórios improvisados criados com pneus de carros. Em 2002, um jornalista que estava trabalhando infiltrado foi retalhado com uma espada samurai por um traficante conhecido como Elias Maluco.
Com as guerras das drogas se espalhando como epidemia pelo Rio, a sociedade anda assustada.
"Sem dúvida, as coisas estão piorando, especialmente no Rio", diz Carlinhos Costa, coordenador de segurança e direitos humanos na ONG Viva Rio.
"Para os estrangeiros, não há problema em vir aqui, mas nós não podemos sair", acrescenta Fábio Ema, grafiteiro e assistente social que tem contatos com alguns dos mais violentos traficantes de drogas do Rio. "Se as coisas continuarem assim, ninguém mais vai poder sair de casa. A favela não agüenta mais. Está se transformando em Bogotá, na Colômbia", diz.
Até mesmo na sofisticada zona sul carioca o conflito não pára. A maior das favelas da América Latina, a da Rocinha, e a vizinha favela do Vidigal estão em pé de guerra, ocupadas pela polícia militar. Combatentes adolescentes patrulham as estreitas vielas do Vidigal, conscientes de que amanhã podem estar jazendo no necrotério local. Há um toque de recolher em vigor, às 19h, e cem policiais estão revistando as pessoas que entram e saem das favelas.
"Os traficantes vão invadir porque querem tomar as bocas de drogas onde os playboys gastam seu dinheiro", afirmou um morador de Vidigal, que não quis se identificar.
De acordo com a polícia, dois milhões de libras [mais de R$ 10 milhões] em cocaína são vendidos a cada semana na Rocinha. Desde a morte de Lulu, o chefe do tráfico local, no começo do ano, uma cruel disputa pelo controle do comércio de drogas na Rocinha está em curso.
"Nunca se sabe quando a guerra pode recomeçar", disse Carlos Teixeira, 28, que vive no centro da Rocinha, um dos focos dos confrontos entre a polícia e os traficantes. Enquanto ele fala, uma equipe das forças especiais da polícia marcha ao nosso lado, rifles apontados para a mistura de casas de blocos que caracteriza as comunidades pobres cariocas. De acordo com as estatísticas mais recentes, a polícia do Rio matou mil brasileiros em 2003, a maioria dos quais jovens e negros.
O assassinato de Escadinha destaca a mudança dos valores entre os traficantes cariocas, a qual gerou uma espiral cada vez mais intensa de violência armada, que arrasta a cidade. Até a metade dos anos 80, revólveres eram a arma padrão dos traficantes do Rio. Agora, é comum ver fuzis de assalto AR-15 e AK-47 nas vielas de muitas das 600 favelas, que abrigam 10% da população do Rio.
Como todos os chefões das drogas, Escadinha começou de baixo. Entrou no tráfico aos 16 anos, quando a construtora de seu pai faliu. Inicialmente trabalhando como fogueteiro (vigia), trabalhou até se tornar dono do tráfico em uma favela, no final dos anos 70. Em uma era de chefões do crime à moda antiga, nascidos e criados nas favelas, ele era uma figura popular, que abriu uma creche chamada Príncipe da Paz em uma comunidade.
"Escadinha era uma figura tão lendária que é difícil separar os mitos da realidade", diz Costa.
Incerteza semelhante cerca os motivos para seu assassinato. Alguns acreditam que tenha sido uma disputa pelo comando da frota de táxis Elite. Outros alegam que foi um caso de acerto de contas de parte de facções rivais do tráfico ou da polícia.
"Ninguém sabe ao certo se foi o Comando Vermelho ou a Amigos dos Amigos que o matou. Mas parece que ele estava associado a alguns grupos diferentes", disse um ex-membro do CV, que não quer que seu nome seja revelado.
A família de Escadinha vivia no Morro do Juramento, onde a facção Amigos dos Amigos reina suprema. Mas recentemente a polícia encontrou intercomunicadores da frota de táxis nas mãos da quadrilha rival Comando Vermelho. A polícia suspeita que ele estivesse em contato com o inimigo e por isso tenha sido punido.
Mas enquanto o samba perde o pique no cemitério do Irajá, a mulher de Escadinha insiste em que ele abandonara o crime. "Morreu porque era um homem de palavra. Disse que não voltaria ao crime e não voltou", insistia ela.
Sentenciado a 51 anos de prisão por tráfico de drogas, Escadinha, pai de cinco filhos, se tornou cristão evangélico e chegou até a desfrutar de uma breve carreira no rap. Em 1999, gravou uma faixa chamada "O Crime Nunca Mais", com o rapper MV Bill, de "Cidade de Deus".
No momento de sua morte, Escadinha estava de novo sob investigação por suspeita de conexão com o tráfico de drogas.
Tinha muitos inimigos, mas também muitos defensores. Como chefão da favela, Escadinha tomava conta dos moradores locais. O nome da área, Juramento, deriva da promessa feita por um dos primeiros donos do tráfico local, de proteger os moradores contra assaltos e estupros.
Os tempos mudaram. Quando Escadinha era o chefe do tráfico no Juramento, nos anos 70, o tipo de fuzil automático que o matou era virtualmente desconhecido. Agora, as favelas dos morros estão repletas de artilharia pesada.
"Conheci muitos desses caras", diz Fábio Ema. "Não são loucos como as pessoas dizem. Vendem drogas porque são contra o sistema em que estamos vivendo. A sociedade acha que vai encontrar só negros pobres e andando descalços nas favelas. Mas nem imagina o quanto eles são organizados. Dispõem de internet, rádio, telefone... e a mensagem que transmitem é aceita por muitos."
À medida que o nível de violência cresce e o Estado observa, impotente, muitos dos pobres da cidade não têm escolha a não ser apoiar os traficantes.
"Os traficantes nos dão uma chance, a polícia não. A polícia entra [na favela] atirando sem dó. Pode ser um trabalhador, estudante, qualquer um", disse Andrey Luiz Câmara Gonçalves dos Santos, morador de Jacarepaguá, zona oeste do Rio.
Carlos Teixeira, que morou na Cidade de Deus, concorda: "Se você está com fome, vai à boca e alguém lhe dá alguma coisa para comer, o que nunca acontece na prefeitura, onde muitas vezes ninguém escuta".
No Jardim Catarina, subúrbio de São Gonçalo onde Escadinha costumava operar, os sentimentos são semelhantes. "Não consigo ficar zangado com os traficantes, porque são gente do povo, e não posso ficar zangado com o meu povo", disse Victor Hugo Freitas, 21. "Quem devo apoiar? A polícia, que não conheço, ou o traficante, que é meu amigo de infância?", pergunta Freitas, um funkeiro respeitado no Rio.
Nem todo mundo aceita a idéia de que os traficantes de hoje tenham o apoio de suas comunidades ao contrário da geração de Escadinha. Costa diz que "a fase dos traficantes atenciosos, que respeitavam a comunidade, está cada vez mais distante, e eles são cada vez mais truculentos":
"Hoje, esses meninos assumem o controle e não têm respeito pelos moradores. A única coisa que têm é poder de fogo pesado".
Nos morros, acima da favela do Juramento, uma saudação de tiros ecoa em memória de Escadinha. O assassinato aconteceu no dia anterior. Na entrada da favela, um alto-falante toca "Meu Bom Juiz", o samba escrito por Bezerra da Silva em 1980 como tributo ao amigo Escadinha.
"É um homem útil para nós", elogia um dos versos. "Vai tornar a população mais forte". Mais abaixo, nas vielas do Juramento, a venda de cocaína continua, sem pausa.
O culto a Escadinha gerou diversos tributos musicais. Outra canção gravada em sua honra pedia: "Me leve na memória, porque meu futuro é a morte". É um epitáfio sombrio, mas apropriado para o fim que o aguardava, e um lembrete de que, para os milhares de crianças e adolescentes envolvidos no tráfico de drogas, o Rio é uma cidade sem futuro.


Tradução de Paulo Migliacci

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