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A cidade da cocaína e da carnificina
TOM PHILLIPS
THAIS VIALLELA
DO "INDEPENDENT", NO RIO
Escaldadas ao sol da tarde de
sexta-feira, cerca de 300 pessoas
levam o carnaval a um cemitério
de subúrbio, na zona oeste do Rio.
O grupo está cantando um samba. Seu rei -um dos mais notórios traficantes de drogas da cidade- foi morto, o corpo dilacerado por 12 tiros. Reunida em torno
da sepultura, a massa canta com
vontade, gritando: "Ei, ei, ei, Escadinha é o nosso rei".
"Tenho muito orgulho dele",
clama Rosemar Encina, mulher
do lendário bandido. Do lado de
fora, cinco tiros soam em tributo
ao homem conhecido, com deferência, pelo apelido Seu Zé.
Trinta e seis horas antes, José
Carlos dos Reis Encina, mais conhecido como Escadinha, estava
dirigindo a caminho do trabalho.
Ele passava os
dias fora da prisão
onde cumpre sua
sentença. Sem
aviso, uma motocicleta fechou o
seu Vectra prateado, e o carona disparou diversos tiros de fuzil contra
o carro. Minutos
mais tarde, um
herói popular do
crime organizado
brasileiro no século 20 estava estendido no meio
da movimentada
avenida, cercado
por uma poça de
sangue. Os transeuntes disputavam espaço como
abutres, tentando
observar o corpo
de Encina, 49.
Como o traficante Zé Pequeno, um dos protagonistas fictícios do premiado filme "Cidade de Deus", Escadinha
foi o chefão do comércio de cocaína do Rio de Janeiro nos anos 80,
e era um dos líderes de uma das
maiores organizações brasileiras
de tráfico de drogas, o Comando
Vermelho. Sua morte foi o capítulo final de uma vida repleta de
ação.
Acredita-se que tenha organizado a tentativa de seqüestrar a
princesa Anne, irmã da rainha
Elizabeth, durante uma visita ao
Brasil em 1986. Mas Escadinha ganhou nome, muito literalmente,
com sua tensa fuga do presídio da
Ilha Grande, a resposta brasileira
a Alcatraz, na véspera do Ano Novo, em 1985. Em plena luz do dia,
um helicóptero seqüestrado por
Gordo, parceiro de Escadinha no
crime, pousou no pátio e o tirou
da prisão.
Horas mais tarde, ele estava de
volta ao comando do tráfico de
cocaína na favela do Juramento.
Ostentando a liberdade reconquistada, Escadinha chegou a
participar de desfiles de carnaval
no ano seguinte, vestido como
uma voluptuosa mulher.
"Ele sempre foi conhecido pelo
seu espírito de aventura", disse
Carlinhos Costa, criado na favela
da Rocinha no auge do reino de
Escadinha.
Mas, em 23 de setembro, sua
sorte não funcionou. Depois de
receber diversos disparos na cabeça, a curta distância, o corpo de
Escadinha estava quase irreconhecível, estendido no asfalto escaldante da avenida Brasil. O rei
estava morto.
O assassinato pontuou um mês
explosivo na ininterrupta guerra
das drogas que toma o Rio. As favelas da cidade
estão irrompendo em violência
que muitas vezes se equipara
aos conflitos da
Tchetchênia e
do Sudão em
termos de intensidade, se
não em destaque na mídia.
Com as ferozes disputas por
território que
estão sendo deflagradas no
Rio, muita gente teme agora
que a cidade esteja à beira do
abismo. O Rio
de Janeiro tem o
mais alto índice
de mortos por
disparos de arma de fogo no
país. Entre 1980
e 2000, houve
600 mil assassinatos no Brasil,
ante 350 mil nos 27 anos de guerra
civil em Angola. No começo deste
ano, um esconderijo contendo oito minas e 161 granadas de mão
foi localizado na favela da Coréia,
na zona oeste do Rio.
"Ninguém sabe ao certo quantas armas existem na cidade", reconheceu Benjamin Lessing, especialista em desarmamento no
Rio de Janeiro.
A quilômetros de distância das
areias douradas de Copacabana,
conflitos mortíferos se desenrolam entre jovens traficantes de
drogas com apelidos dignos de
personagens de desenho animado, como Dudu. Perto da estrada
que liga o aeroporto internacional
do Galeão à mundialmente famosa praia de Ipanema, localizam-se
algumas das favelas mais explosivas do mundo. Para os cariocas, a
área ficou conhecida como Faixa
de Gaza. Entre 1987 e 2001, cerca
de 4.000 habitantes do Rio morreram violentamente, ante apenas
467 na Cisjordânia, que é oficialmente reconhecida como uma
zona de guerra.
Na fronteira entre a Baixa do Sapateiro e a Nova Holanda, duas
favelas que integram a resposta
brasileira a Gaza, existe uma escola vazia. Suas paredes estão recobertas por furos de balas. Na rua
vizinha, conhecida localmente como Fogo Cruzado, devido às freqüentes batalhas travadas a tiros
entre facções rivais de traficantes,
cartuchos vazios recobrem o pavimento.
"Nunca se sabe quando pode
começar um tiroteio ou de onde
os tiros podem surgir", diz Ayrton Ribeiro, assistente social na
região, enquanto cruza uma das
saídas pútridas de esgoto nas
quais os traficantes muitas vezes
despejam cadáveres. "Não existe
futuro aqui."
Após a era de Escadinha, os traficantes se tornaram cada vez
mais impiedosos. Dudu, que tentou invadir a Rocinha alguns meses atrás, supostamente teria servido rivais como refeição ao seu
jacaré de estimação. Outros comandantes do tráfico de drogas
tratam inimigos com brutalidade
semelhante, forçando-os a nadar
por esgotos a céu aberto ou queimando-os nos chamados microondas, crematórios improvisados criados com pneus de carros. Em 2002, um jornalista que
estava trabalhando infiltrado foi
retalhado com uma espada samurai por um traficante conhecido
como Elias Maluco.
Com as guerras das drogas se
espalhando como epidemia pelo
Rio, a sociedade anda assustada.
"Sem dúvida, as coisas estão
piorando, especialmente no Rio",
diz Carlinhos Costa, coordenador
de segurança e direitos humanos
na ONG Viva Rio.
"Para os estrangeiros, não há
problema em vir aqui, mas nós
não podemos sair", acrescenta
Fábio Ema, grafiteiro e assistente
social que tem contatos com alguns dos mais violentos traficantes de drogas do Rio. "Se as coisas
continuarem assim, ninguém
mais vai poder sair de casa. A favela não agüenta mais. Está se
transformando em Bogotá, na
Colômbia", diz.
Até mesmo na sofisticada zona
sul carioca o conflito não pára. A
maior das favelas da América Latina, a da Rocinha, e a vizinha favela do Vidigal estão em pé de
guerra, ocupadas pela polícia militar. Combatentes adolescentes
patrulham as estreitas vielas do
Vidigal, conscientes de que amanhã podem estar jazendo no necrotério local. Há um toque de recolher em vigor, às 19h, e cem policiais estão revistando as pessoas
que entram e saem das favelas.
"Os traficantes vão invadir porque querem tomar as bocas de
drogas onde os playboys gastam
seu dinheiro", afirmou um morador de Vidigal, que não quis se
identificar.
De acordo com a polícia, dois
milhões de libras [mais de R$ 10
milhões] em cocaína são vendidos a cada semana na Rocinha.
Desde a morte de Lulu, o chefe do
tráfico local, no começo do ano,
uma cruel disputa pelo controle
do comércio de drogas na Rocinha está em curso.
"Nunca se sabe quando a guerra
pode recomeçar", disse Carlos
Teixeira, 28, que vive no centro da
Rocinha, um dos focos dos confrontos entre a polícia e os traficantes. Enquanto ele fala, uma
equipe das forças especiais da polícia marcha ao nosso lado, rifles
apontados para a mistura de casas
de blocos que caracteriza as comunidades pobres cariocas. De
acordo com as estatísticas mais
recentes, a polícia do Rio matou
mil brasileiros em 2003, a maioria
dos quais jovens e negros.
O assassinato de Escadinha destaca a mudança dos valores entre
os traficantes cariocas, a qual gerou uma espiral cada vez mais intensa de violência armada, que arrasta a cidade. Até a metade dos
anos 80, revólveres eram a arma
padrão dos traficantes do Rio.
Agora, é comum ver fuzis de assalto AR-15 e AK-47 nas vielas de
muitas das 600 favelas, que abrigam 10% da população do Rio.
Como todos os chefões das drogas, Escadinha começou de baixo.
Entrou no tráfico aos 16 anos,
quando a construtora de seu pai
faliu. Inicialmente trabalhando
como fogueteiro (vigia), trabalhou até se tornar dono do tráfico
em uma favela, no final dos anos
70. Em uma era de chefões do crime à moda antiga, nascidos e criados nas favelas, ele era uma figura
popular, que abriu uma creche
chamada Príncipe da Paz em uma
comunidade.
"Escadinha era uma figura tão
lendária que é difícil separar os
mitos da realidade", diz Costa.
Incerteza semelhante cerca os
motivos para seu assassinato. Alguns acreditam que tenha sido
uma disputa pelo comando da
frota de táxis Elite. Outros alegam
que foi um caso de acerto de contas de parte de facções rivais do
tráfico ou da polícia.
"Ninguém sabe ao certo se foi o
Comando Vermelho ou a Amigos
dos Amigos que o matou. Mas parece que ele estava associado a alguns grupos diferentes", disse um
ex-membro do CV, que não quer
que seu nome seja revelado.
A família de Escadinha vivia no
Morro do Juramento, onde a facção Amigos dos Amigos reina suprema. Mas recentemente a polícia encontrou intercomunicadores da frota de táxis nas mãos da
quadrilha rival Comando Vermelho. A polícia suspeita que ele estivesse em contato com o inimigo e
por isso tenha sido punido.
Mas enquanto o samba perde o
pique no cemitério do Irajá, a mulher de Escadinha insiste em que
ele abandonara o crime. "Morreu
porque era um homem de palavra. Disse que não voltaria ao crime e não voltou", insistia ela.
Sentenciado a 51 anos de prisão
por tráfico de drogas, Escadinha,
pai de cinco filhos, se tornou cristão evangélico e chegou até a desfrutar de uma breve carreira no
rap. Em 1999, gravou uma faixa
chamada "O Crime Nunca Mais",
com o rapper MV Bill, de "Cidade
de Deus".
No momento de sua morte, Escadinha estava de novo sob investigação por suspeita de conexão
com o tráfico de drogas.
Tinha muitos inimigos, mas
também muitos defensores.
Como chefão
da favela, Escadinha tomava
conta dos moradores locais.
O nome da
área, Juramento, deriva da
promessa feita
por um dos
primeiros donos do tráfico
local, de proteger os moradores contra assaltos e estupros.
Os tempos
mudaram.
Quando Escadinha era o
chefe do tráfico
no Juramento,
nos anos 70, o
tipo de fuzil
automático
que o matou
era virtualmente desconhecido. Agora, as favelas dos
morros estão repletas de artilharia pesada.
"Conheci muitos desses caras",
diz Fábio Ema. "Não são loucos
como as pessoas dizem. Vendem
drogas porque são contra o sistema em que estamos vivendo. A
sociedade acha que vai encontrar
só negros pobres e andando descalços nas favelas. Mas nem imagina o quanto eles são organizados. Dispõem de internet, rádio,
telefone... e a mensagem que
transmitem é aceita por muitos."
À medida que o nível de violência cresce e o Estado observa, impotente, muitos dos pobres da cidade não têm escolha a não ser
apoiar os traficantes.
"Os traficantes nos dão uma
chance, a polícia não. A polícia
entra [na favela] atirando sem dó.
Pode ser um trabalhador, estudante, qualquer um", disse Andrey Luiz Câmara Gonçalves dos
Santos, morador de Jacarepaguá,
zona oeste do Rio.
Carlos Teixeira, que morou na
Cidade de Deus, concorda: "Se
você está com fome, vai à boca e
alguém lhe dá alguma coisa para
comer, o que nunca acontece na
prefeitura, onde muitas vezes ninguém escuta".
No Jardim Catarina, subúrbio
de São Gonçalo onde Escadinha
costumava operar, os sentimentos são semelhantes. "Não consigo ficar zangado com os traficantes, porque são gente do povo, e
não posso ficar zangado com o
meu povo", disse Victor Hugo
Freitas, 21. "Quem devo apoiar? A
polícia, que não conheço, ou o
traficante, que é meu amigo de infância?", pergunta Freitas, um
funkeiro respeitado no Rio.
Nem todo mundo aceita a idéia
de que os traficantes de hoje tenham
o apoio de suas comunidades ao
contrário da geração de Escadinha.
Costa diz que "a fase dos traficantes
atenciosos, que
respeitavam a comunidade, está cada vez mais distante, e eles são cada
vez mais truculentos":
"Hoje, esses meninos assumem o
controle e não têm
respeito pelos moradores. A única
coisa que têm é poder de fogo pesado".
Nos morros, acima da favela do Juramento, uma saudação de tiros ecoa
em memória de
Escadinha. O assassinato aconteceu no dia anterior. Na entrada da favela, um alto-falante toca "Meu Bom Juiz", o
samba escrito por Bezerra da Silva
em 1980 como tributo ao amigo
Escadinha.
"É um homem útil para nós",
elogia um dos versos. "Vai tornar
a população mais forte". Mais
abaixo, nas vielas do Juramento, a
venda de cocaína continua, sem
pausa.
O culto a Escadinha gerou diversos tributos musicais. Outra
canção gravada em sua honra pedia: "Me leve na memória, porque
meu futuro é a morte". É um epitáfio sombrio, mas apropriado
para o fim que o aguardava, e um
lembrete de que, para os milhares
de crianças e adolescentes envolvidos no tráfico de drogas, o Rio é
uma cidade sem futuro.
Tradução de Paulo Migliacci
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