São Paulo, segunda-feira, 13 de dezembro de 2004

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MOACYR SCLIAR

O navegador

 Temporal provocou estragos em São Paulo e em cidades vizinhas; enchente faz carros boiarem. Cotidiano, 7.dez. 2004

Quando ele percebeu que o carro estava flutuando sobre as águas barrentas, sua primeira reação foi de pânico. Mas logo se deu conta de que não havia nada que pudesse fazer. Abandonar o veículo, àquela altura, seria mais perigoso do que permanecer nele: não poucas pessoas se tinham afogado por causa desse gesto de desespero. De resto, se o carro flutuava, ele não corria risco imediato; ao contrário, sempre havia a possibilidade de chegar a um lugar onde pudesse desembarcar são e salvo.
Logo se deu conta, porém, de que aquilo não ocorreria. Da estrada, o carro foi levado para um riacho cujas águas se haviam avolumado pela chuva; e do riacho chegou a um rio. Que, como como quase todos os rios, desembocava no mar.
Agora sim, tratava-se de uma aventura. Ali estava ele, já distante do litoral, e afastando-se cada vez mais da terra firme. Transformara-se num navegador solitário. E, como navegador solitário, poderia percorrer o oceano. Perspectiva excitante, que colocava-o em pé de igualdade com um Colombo, a um Vasco da Gama, a um Pedro Álvares Cabral. Só que estes chefiavam frotas, tinham gente sob o seu comando, contavam com mantimentos. Ele, não. Ele só contava consigo próprio. Não poderia sequer basear-se na experiência de Robinson Crusoé, que, náufrago, chegara a uma ilha onde contava com todo o equipamento do navio afundado.
Mas, se ele não tinha recursos, poderia improvisar. E, usando materiais do próprio carro, fabricou uma linha de pescar. Logo tinha peixe à vontade, que assava no chão do carro, acendendo fogo com seu isqueiro. Água era a da chuva, que felizmente não faltava.
Tudo o que ele queria agora era descobrir uma região desconhecida e desabitada, uma região na qual pudesse desembarcar, como Colombo ou Cabral. Se houvesse nativos, faria com que trabalhassem para ele. Já não seria o obscuro gerente de uma pequena empresa; seria um rei, um imperador. Desde que o destino o ajudasse, claro. Desde que as correntes marítimas conduzissem o carro flutuante para o lugar certo. Àquela altura ele já não sabia onde estava, mas isso não tinha importância; estava seguro de que a sorte trabalhava a seu favor.
Um dia avistou terra. Ligou o motor e fez com que o carro se dirigisse para lá. Havia uma cidade, no local. Uma cidade que de imediato lhe pareceu familiar: chovia muito e as ruas estavam inundadas, com carros boiando aqui e ali. E aí ele se deu conta: havia descoberto, mais uma vez, o Brasil.


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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