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MOACYR SCLIAR
O navegador
Temporal provocou estragos em São
Paulo e em cidades vizinhas; enchente faz carros boiarem.
Cotidiano, 7.dez. 2004
Quando ele percebeu que
o carro estava flutuando sobre as águas barrentas, sua primeira reação foi de pânico. Mas
logo se deu conta de que não havia nada que pudesse fazer.
Abandonar o veículo, àquela altura, seria mais perigoso do que
permanecer nele: não poucas pessoas se tinham afogado por causa
desse gesto de desespero. De resto,
se o carro flutuava, ele não corria
risco imediato; ao contrário, sempre havia a possibilidade de chegar a um lugar onde pudesse desembarcar são e salvo.
Logo se deu conta, porém, de
que aquilo não ocorreria. Da estrada, o carro foi levado para um
riacho cujas águas se haviam
avolumado pela chuva; e do riacho chegou a um rio. Que, como
como quase todos os rios, desembocava no mar.
Agora sim, tratava-se de uma
aventura. Ali estava ele, já distante do litoral, e afastando-se cada
vez mais da terra firme. Transformara-se num navegador solitário. E, como navegador solitário,
poderia percorrer o oceano. Perspectiva excitante, que colocava-o
em pé de igualdade com um Colombo, a um Vasco da Gama, a
um Pedro Álvares Cabral. Só que
estes chefiavam frotas, tinham
gente sob o seu comando, contavam com mantimentos. Ele, não.
Ele só contava consigo próprio.
Não poderia sequer basear-se na
experiência de Robinson Crusoé,
que, náufrago, chegara a uma
ilha onde contava com todo o
equipamento do navio afundado.
Mas, se ele não tinha recursos,
poderia improvisar. E, usando
materiais do próprio carro, fabricou uma linha de pescar. Logo tinha peixe à vontade, que assava
no chão do carro, acendendo fogo
com seu isqueiro. Água era a da
chuva, que felizmente não faltava.
Tudo o que ele queria agora era
descobrir uma região desconhecida e desabitada, uma região na
qual pudesse desembarcar, como
Colombo ou Cabral. Se houvesse
nativos, faria com que trabalhassem para ele. Já não seria o obscuro gerente de uma pequena empresa; seria um rei, um imperador. Desde que o destino o ajudasse, claro. Desde que as correntes
marítimas conduzissem o carro
flutuante para o lugar certo.
Àquela altura ele já não sabia onde estava, mas isso não tinha importância; estava seguro de que a
sorte trabalhava a seu favor.
Um dia avistou terra. Ligou o
motor e fez com que o carro se dirigisse para lá. Havia uma cidade, no local. Uma cidade que de
imediato lhe pareceu familiar:
chovia muito e as ruas estavam
inundadas, com carros boiando
aqui e ali. E aí ele se deu conta:
havia descoberto, mais uma vez,
o Brasil.
Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às
segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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