São Paulo, segunda-feira, 14 de fevereiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MOACYR SCLIAR

Imparcialidade

Juiz de futebol alemão acusado de apostar em resultado. Ele é suspeito de ter feito uma aposta no resultado de uma partida por ele apitada, em que um clube da primeira divisão acabou perdendo para um time de uma divisão inferior. O juiz apitou dois pênaltis contra o time da primeira divisão e expulsou um jogador deste, mas nega ter feito algo de errado.
Folha Online, 24.jan.2005


 

O jogo oporia duas seleções historicamente rivais, os Verdes e os Brancos. E o resultado era absolutamente imprevisível; tanto poderia ganhar uma como outra -sem falar, claro, no empate, um desfecho sempre possível no futebol.
O juiz sabia que, por causa de certos boatos referentes a sua honestidade, seria vigiado a cada minuto. Por isso não fez nada que pudesse despertar suspeitas. Mas, pouco antes de entrar no gramado, chamou Hans, o amigo em quem confiava cegamente, e pediu-lhe que apostasse uma grande soma nos Verdes. Hans foi correndo para cumprir a missão e ele deu início à partida.
O primeiro tempo terminou zero a zero, e tudo indicava que este escore não se alteraria -os dois times estavam muito equilibrados. De modo que o juiz resolveu agir. Deu um pênalti contra os Brancos. Os protestos foram imediatos, porque nenhuma infração havia ocorrido, mas ele se manteve inflexível. O centroavante dos Verdes cobrou à perfeição: um a zero.
No meio do segundo tempo, viu Hans, junto ao alambrado, abanando aflitivamente para ele. Deu um jeito de se aproximar. O amigo entregou-lhe um papelzinho: "Enganei-me. Apostei nos Brancos em vez de apostar nos Verdes".
E agora? O que fazer? Muda a aposta, ele resmungou entredentes. Hans saiu em disparada e ele continuou a apitar. Pouco tempo depois, Hans voltava, sem fôlego, com novo papelzinho: o encarregado das apostas dizia que não podia mudar nada, já que a partida estava no segundo tempo.
Sem alternativa, ele, em rápida sucessão, apitou dois pênaltis contra os Verdes. Os torcedores urravam de fúria, mas ele manteve-se imperturbável. Os dois pênaltis foram cobrados com sucesso, e os Brancos passaram à frente no marcador.
Aí aconteceu o inesperado. Irritados com o rumo que tomava a partida, os Verdes reagiram e marcaram um tento: dois a dois. O jogo agora aproximava-se do final e ele não hesitou: novo pênalti contra os Verdes. O centroavante dos Brancos, nervoso, cobrou mal e errou.
Ele não teve dúvidas: mandou cobrar de novo. E quando o centroavante errou de novo, acabou se convencendo: às vezes não há outro jeito senão resignar-se à imparcialidade, e apostar na loteria, menos incerta que o futebol.


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

Texto Anterior: Mais anticoncepcionais serão difundidos
Próximo Texto: Consumo: Estudante pede à Motorola que substitua seu aparelho
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.